Para o meu Tio que faria hoje anos se estivesse cá
Eis que morrestes - agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança o meu viver
Agora estais perdido de mim
- O olhar não atravessa esta distância -
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil
Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna
E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembrei de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e de meu canto
Sophia de Mello Breyner Andresen, Cem Poemas de Sophia, Págª59 e 60
Visão, Agosto de 2004
1 comentário:
"O olhar não atravessa esta distância" ... simplesmente lindo. Não é por acaso que é a minha poeta de eleição.
"O tempo denso de sangue e de saudade"...
Belo poema!
:)
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