Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.
Mostrar mensagens com a etiqueta Palavras de outros. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Palavras de outros. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Ambição

Daqui
"Se escrevo, não é porque tenha algo
de novo a dizer.
A gente teve sempre o mesmo lote
As mesmas amarguras e as mesmas alegrias
Aquilo a que se chama igualdade de oportunidades.
Se escrevo, é porque me mato a procurar
A mais concisa representação gráfica das lágrimas."
S.S.Kharkianakis
in Itaca, cadernos de ideias, textos & imagens,
Outubro 2010

E com as mesmas mãos que tento dar forma às palavras que dançam na minha cabeça e se ensaiam no teclado, enfarinho massas e tendo formas que se transformam. Em pães, em bolachas e biscoitos. E as mãos sempre em acção, em movimento, em trabalho, tornam-se quase uma parte independente de mim. Quase não precisam que o cérebro as conduza, porque elas sabem como fazer tudo. E as mãos também sabem acariciar. E as mãos também sabem tocar. E as mãos falam. Como olhos. Como sorrisos. Como palavras. Como lágrimas.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

maldição contra o amor sem corpo, para o alberto pimenta

Daqui
«teve a coragem de amar uma mulher com fino cabelo de cristal. à noite, na escuridão da cama, não lhe tocava por amor, e por amor a mulher cuidou do seu cabelo, cada vez mais frondoso e delicado, por isso, passeava o casal orgulhoso de tanta beleza pelas ruas. entravam em casa só mais tarde, quando ninguém sobrava para ver. era também quando se amavam sem se poderem suportar. cada um para seu lugar sem dizer mais nada, com a tensa proximidade da violência. sem filhos, desligavam as luzes e emudeciam. era quando alguns animais irrompiam pelos poros das paredes e lhes fungavam nos pescoços, o cabelo da mulher ondulava em cintilações no escuro, pela moléstia das pequenas cócegas e mordidas»


contabilidade
valter hugo mãe,
Editora Objectiva,
Outubro 2010


quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Poema Sobre a Recusa

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda
Maria Teresa Horta

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Decisões para 2011

Estas são as decisões que a Patrícia Reis, no seu Vão Combate, enumerou para 2011.
Por me identificar tanto com algumas delas (a maioria delas) pedi-lhe autorização e transpu-las para aqui.

«São várias e muitas incompreensíveis para quem não me conhece bem, mas aqui vão:

ignorar quem me ignora na verdade
dar importância e amor a quem me dá importância e amor
desistir de ajudar ou resolver os males dos outros pela simples razão que sou, muitas vezes, incompreendida e fico na merda
deixar de fazer coisas pelos outros quando claramente não as fariam por mim
[...]
desistir de carregar com o passado como se fosse uma camisola interior
dar-me tempo
escrever apenas porque sim, por necessidade
cuidar da minha saúde de forma consequente
fingir melhor que o crescimento dos meus filhos não me entristece
ficar contente com o crescimento dos meus filhos e as múltiplas coisas que fazem e conquistam
assumir de vez a fama de ser bruta, deixar de lado a hipocrisia social e só fazer o que quero e com quem quero
deixar de ter obrigações idiotas em datas determinadas por um calendário
dar prendas a quem gosto nos dias em que me apetece
festejar os sucessos [cá de casa] com mais alegria
delegar e deixar as coisas andarem, porque não há tempo para nada mas há sempre tempo para
[...]
dizer às pessoas que não estou disponível, apenas por não estar, sem ter de arranjar uma merda de uma desculpa
...
Existem mais umas tantas coisas, poucas, mas essas não se publicam em lado nenhum.

Desejo-vos um excelente 2011»

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A Minha Cidade

Daqui
O Natal que se aproxima devolve-me à lembrança imagens de outros natais. Os natais da minha infância, da minha juventude. Os natais em que Lisboa era o palco de tudo. As lojas que eu frequentava com a minha irmã, donas de um pequenino orçamento que distribuíamos por presentes para Pais e Avós. Eram sempre as mesmas lojas, na mesma Avenida de Roma. Lisboa não me faz falta mas está dentro de mim em determinadas alturas. O natal é uma delas.

As imagens do mercado de arroios onde se comprava a abóbora para os sonhos
As imagens da cozinha dos meus Avós onde tudo acontecia para que fosse Natal à mesa
As imagens das jarras de azevinho
As imagens dos pequenos cartões para os presentes que se compravam na tabacaria da porta ao lado
As imagens dos embrulhos que se faziam mais ou menos às escondidas e que se apalpavam também à sucapa dos adultos
As imagens de natais tão diferentes

Este ano o Natal afigura-se ainda mais complicado do que nos últimos anos. Não tenho lista feita nem me apetece fazê-la. O meu lado Grinch nem sequer está ao de cima, porque ainda não consigo pensar em Natal...
...mas consigo pensar na minha cidade, que eu acho linda e que a Luísa fotografa tão bem!

"Naquele momento creio ter entendido: a cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida, um chão para a memória. Enrolei a linha, e regressei a casa, o poente avermelhando a paisagem e os flamingos trazendo o céu para junto da terra. Então, ganhei certeza: a cidade em que nasci estava destinada a nascer de mim. Um arame invisível nos prendia os pulsos, a mim e à minha terra natal." 
in Pensageiro Frequente
A Cidade Sonhada,
Mia Couto

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Quando Não Sei o Que Escrever, Transcrevo # [5]

Jean Paul Sartre
[...]
«E a mim interessam-me como são. Com todas as suas torpezas e todos os seus vícios. Comovem-me as suas vozes e as suas mãos quentes que agarram e a sua pele, a mais nua de todas as peles, e o seu olhar inquieto e a luta desesperada que travam, cada um por sua vez, contra a morte e contra a angústia. Para mim tem importância um homem a mais ou a menos no mundo. Todas as vidas são preciosas. »
[...]
in as mãos sujas,
Jean Paul Sartre,
livros de bolso europa américa,
edição nº 525/1645
Fevereiro de 1972

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Hora de Jantar

Daqui
Escureceu cedo. Cedo demais. Fiz a Marginal quatro vezes seguidas, como se fosse um vaivem espacial a fazer treinos entre a terra e a lua. Sem música. Descobri hoje que não sei conduzir sem música. O silêncio dentro do carro distrai-me e as manobras saem tortas. Nem os pensamentos fluem. O jantar está pronto. A mesa está posta. Tudo irrepreensivelmente direito e nos sítios certos. Tudo dentro da hora que todos esperam que tudo esteja pronto. Previsivelmente. A mesa. O jantar. A hora de ir dormir. Sempre. nem sempre sei como consigo, mas a verdade é que as coisas acabam por acontecer. Por bater certas. Hoje apetecia-me fazer-te uma declaração de amor. Sim, porque é de amor que se trata e de que se fala quando os anos passados a dois já não invocam paixão. Se eu te fisesse uma declaração de amor? Pegava-te pela mão e levava-te. Para um qualquer ponto da nossa Marginal. Se eu escolhesse um restaurante e te levasse a jantar? Sem te falar no preço dos pratos, do vinho ou das sobremesas (como fazes sempre, retirando ao prazer que se teve todo o prazer que se pode guardar em recordações). Seria bom. Hoje era isso que me apetecia. Dizer-te que me importo. Sentar-me em frente ao mar e comer um jantar cujo cheiro não estivesse nas minhas narinas, cujo paladar não estivesse na minha boca. Hoje apetecia-me um jantar que eu não tivesse feito. Para mim. Para ti.

domingo, 31 de outubro de 2010

ETERNITY (FOR MEN), Pedro Mexia


Ela deu-me eternidade
em papel de aniversário
embora não fossem os meus anos.
Fez-me mal, agora
que o cheiro dela e o meu
já se tinham misturado.
Prenda de namorados, o símbolo
era ilusório,
e o amor acabou antes ainda
do frasco.

domingo, 24 de outubro de 2010

Quando Não Sei o que Escrever, Transcrevo # [3]



[...]
«São coisas assim. Coisas que a limitam, aprisionam, desfiguram. Ele torna-a um conjunto de coisas sem nome. Ela sabe e sabe melhor quando vê as horas a serem comidas pelas telenovelas e o ouve roncar de álcool no sofá. A cozinha está arrumada, não lhe resta mais nada, a luz da televisão a engolir-lhe a tristeza e ela a perder a noção de si própria, pronta para ser uma princesa, alguém outro que ninguém conhece. Uma mulher, por fim.»[...]




in Leya Contos

sábado, 23 de outubro de 2010

A Força das Coisas, Simone de Beauvoir

Simone de Beauvoir
« Faz-se muitas vezes da literatura uma ideia mais romântica. Mas ela impõe-me esta disciplina precisamente por ser algo diferente de um trabalho: uma paixão ou, digamos, uma mania. Ao acordar, uma ansiedade ou um apetite obriga-me a pegar imediatamente na caneta; só obedeço a uma ordem abstracta nos períodos sombrios em que duvido de tudo: aí a ordem pode mesmo ser quebrada. A não ser em viagem, ou quando se passam acontecimentos extraordinários, um dia em que não escreva tem um gosto a cinzas

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Memórias do Futuro, Daniel Sampaio

Daqui


«Então chorei. Desejei que te transformasses numa ausência, que o teu nome fosse uma recordação em breve esquecida. Ansiei que as minhas palavras te deixassem só para sempre. Senti-me despido, abandonado nas trevas de uma noite de Inverno.»

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

«...Espero que te rodeiem os risos, te envolvam as emoções. [...] que consigas continuar a escrever pois a tua escrita é a tua essência.»

Da Net

foram muitas as mensagens de parabéns. sms's e mensagens no facebook. as duas linhas que acima reproduzi, pertencem a uma das mensagens de parabéns que recebi. é um dos meus maiores desejos. conseguir continuar a escrever. com capacidade de pensamento. com ideias renovadas. palavras bem alinhadas.

domingo, 17 de outubro de 2010

Já com 45

Se o dia do meu aniversário é sempre um dia feliz para mim, quando consigo juntar à minha volta tantas pessoas de quem gosto (e que sei que gostam de mim) o dia torna-se muito mais Feliz. Foi com alguma pena que me despedi daqueles que foram os últimos a entrar (passava da meia noite eu já não fazia anos) e que foram também os últimos a sair. De repente o meu dia de anos acabara. Era como se eu fosse a Gata Borralheira que durante umas horas fora Cinderela. Em menos de um ai, a carruagem voltara a ser abóbora e os cavalos brancos pequeninos ratos.
Hoje acordei (cedo, para variar) com a bateria do mimo e da atenção completamente carregada e isso é bom. A pilha de livros que ganhei é mais um motivo para esta alegria, a que se junta o facto de estar sol lá fora, de estar quentinho e de a festa ter sido mesmo muito boa. Obrigada a todos os que vieram. Obrigada a todos os que não vieram mas que gostam também muito de mim.

«Mas o melhor da baía de Inhambane são as pessoas, a sua inesgotável hospitalidade e a sua infinita vontade de trocar tempo e alma.», Mia Couto, Pensageiro Frequente

em Inhambane fui fabricada. deve ter sido de lá que trouxe esta minha vontade. de estar sempre rodeada de pessoas. de saber que todos se sentem bem cá por casa. de ver que uns e outros se vão cruzando, conhecendo e gostando de se rever ano após ano. a Inhambane hei-de voltar um dia. para nela sentir a energia que me enche os dias. o amor que sinto por aqueles de quem gosto. um amor tão grande que às vezes sufoca e não me deixa respirar mais fundo. um amor que me faz sentir medo de perder qualquer um deles. de deixar de saber deles. de deixar de os ver. mas hoje, é de alegri que trata este post.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Poesia [da Cozinha, com Paixão]]



«Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
...-Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.»

Herberto Helder

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Lista dos Ausentes # [1]

Da Net



« Os que já foram permanecem, naquilo que de essencial teve efeito em nós, vivos e na nossa companhia, enquanto nós próprios vivermos. Por vezes conseguimos até conversar melhor com eles, consultá-los e escutar o seu conselho, do que poderíamos junto daqueles que ainda vivem.»

Hermann Hesse,
Elogio da Velhice

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Desencontro (2), Mia Couto

Timbila,
Instrumento Tradicional de Moçambique
No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidao
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculos e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Conciliar? Que Quer Isso Dizer?

eu concilio. sim, vou fazendo os possíveis... para dizer a verdade, não sei muito bem o que é isso, conciliar. só se for andar sempre a correr de um lado para o outro, nem sei bem para quê. o dinheiro não chega para nada, demoro duas horas a chegar ao emprego, primeiro ainda tenho de deixar a miúda na ama. entro às nove. almoço da uma às duas e meia. almoço é como quem diz... trinco uma sandes, engulo um prato de sopa, aproveito para fazer umas compras, o tempo passa num instante. há tardes em que faço tudo o que há para fazer e por volta das quatro fico a olhar para as paredes. um dia, atrevi-me a perguntar ao patrão se não podia sair um pouco mais cedo. estava sol, apetecia-me ir buscar a miúda, coitada!, sai sempre da ama tão tarde, mal dá para nos vermos... achei que podíamos ir ao jardim, comprava-lhe um gelado, sempre era diferente do que metermo-nos num autocarro apinhado, em hora de ponta, e chegar a casa quase de noite... mas olharam para mim como se eu fosse atrasada mental, ou como se estivesse a abusar da sorte de ter um emprego, e nunca mais pedi nada. saio pelas seis, chego à ama por volta das sete, às vezes mais tarde, depende do trânsito. às oito, tenho de estar a fazer o jantar, ao mesmo tempo que dou banho à miúda, que jeito me davam mais dois pares de mãos... depois é metê-la na cama, nem tenho cabeça para histórias, pôr a roupa na máquina, estendê-la, arrumar a cozinha. com sorte, ainda espreito a novela, mas é rara a noite em que não me dá para adormecer no sofá...

tu concilias. és fantástica, tu! nem sei como é que consegues... com três crianças e um lugar na administração da empresa... não dás em maluca? é claro que teres uma carrinha que os leva e traz da escola ajuda muitíssimo. e a tua empregada é uma querida com eles! ainda no outro dia a encontrei na piscina com o Martim... ou terá sido no ballet, com a Carlota? olha, já não me lembro... mas é uma querida. ajuda-te imenso, não é? imagina que tinhas de andar com os três para trás e para a frente e logo agora, que estás separada, isso e mais a empresa... era uma estafa! e a baby-sitter também é amorosa, não é? depois hás-de dar-me o contacto... noutro dia, liguei para tua casa e ela atendeu e disse-me que tinhas ido a um jantar e pareceu-me mesmo simpática... e o teu ex-marido, o que é feito dele? pelo menos vai buscar as crianças ao fim de semana? é que se nem ao fim de semana descansas, vais mesmo acabar por dar em maluca!!

ele concilia. ele?! deixa-me rir... ele chega sempre a casa tardíssimo! e sempre quando os miúdos já estão a dormir, é raro o dia em que os vê... raramente me ajuda, diz que tem mais que fazer! eu levo-os à escola, eu vou às compras, eu ponho a roupa a lavar, eu arrumo e, além disso, trabalho! ele, quando muito, muda uma lâmpada, é capaz de fazer um churrasco quando os meus pais vêm cá almoçar e está bem que há um dia ou outro em que até deixa os miúdos na escola e que aos fins-de-semana joga à bola com eles, mas vê lá se alguma vez desmarcou alguma coisa lá no trabalho ou se meteu um dia de baixa quando ficaram doentes? ou quando nasceram? ok, ok... tens razão, quando nasceram, ficou aqueles três dias em casa e até é verdade que às vezes quer fazer mais e sou eu que não deixo... mas se faço melhor e mais rápido, para quê enervar-me? de cada vez que se oferece para arrumar a cozinha, aquilo fica transformado num lago! e sempre que tira a roupa da corda enrola tudo num bolo que atira para o cesto... é a isso que chamas conciliar?!

nós conciliamos. nem podia ser de outra maneira. trabalhamos as três na mesma empresa, é certo que cada uma com as suas funções, mas sabemos fazer as coisas umas das outras e assim sobra mais tempo. quando a Vera tem de ir buscar os miúdos mais cedo, eu e a Teresa saímos mais tarde. quando a filha da Teresa faz anos, e se não houver muito trabalho, ajudamos na festa. e até quando sou eu, que não tenho filhos, apenas um gato, e fico com uma daquelas dores de cabeça na cama, as duas dizem-me sempre 'descansa e recompõe-te que nós seguramos as pontas, Sofia'. é verdade que o facto de a empresa ser nossa estimula e ajuda. mas, na empresa, há outras pessoas que também têm tolerância de horário, desde que cumpram as suas responsabilidades, é óbvio. e temos mais empregados do que é costume, pois muitos só trabalham meio dia. ganham menos, mas acho que preferem assim. e não é simplesmente por terem mais tempo, mas porque assim se reconciliam mais facilmente com as suas vidas...

vós - governantes, patrões, sindicatos e afins -, que tantas vezes não conciliais coisa nenhuma para além de leis, truques, falácias, poderes e papéis e contratos a prazo, fazei por favor com que tudo flua mais facilmente... será que custa assim tanto?

eles conciliam. de manhã, é ele que leva as crianças à escola. à tarde, é ela que as vai buscar, a não ser que haja um imprevisto de última hora e, nessa altura, telefona-lhe e ele, normalmente, consegue acudir-lhe. dividem as compras, as contas, os planos. dividem os banhos, o colo e o riso. ela prefere que seja ele a fazer o jantar, no fim é ela quem põe a loiça na máquina e que arruma a cozinha. quando ele vai viajar em trabalho, ela prepara-lhe a mala, quando é ela quem vai, ele ajuda-a a fechá-la. costumam ir juntos ao pediatra, às festas da escola, à praia, ao jardim. de vez em quando, deixam os filhos em casa da avó e vão os dois sozinhos jantar. ele costuma deitar as crianças. ela vai aconchegar os lençóis e contar uma história. nem percebem por que razão conciliar ainda é um verbo difícil...

sábado, 9 de outubro de 2010

Calvino, Palomar [ou como um Livro me salvou da pasmaceira]

Estou sentada à espera que uma qualquer ideia me atravesse o pensamento e me espicace, me ponha a escrever. Já coloquei imagens e reitirei-as logo de seguida. Já escrevi palavras que apaguei. Nenhuma delas me estava a fazer grande sentido. Levanto-me direita aos livros. Quando tenho estes acessos de não saber o que escrever e me dirijo aos meus livros, sei que não sou eu que os escolho mas eles que me escolhem a mim. Estranha esta minha mania de dar vontade própria aos livros, mas sinceramente acredito que os meus livros são capazes de me chamar a atenção quando preciso deles. [Ontem vi na televisão uma mulher que tem uma atracção sexual por objectos, chegando ao ponto de se "casar" com a Torre Eifell.] Umas das frases que tinha alinhavado tinham por sujeito o mar. Desisto de tentar. Tenho a cabeça demasiado cansada para conseguir escrever alguma coisa de jeito. Tenho mesmo de me socorrer dos meus livros. Com o indicador da mão direita, sigo as lombadas. Tiro um José Luís Peixoto. Leio algumas páginas avulsas. Enfio-o no seu lugar. Opto por um Italo Calvino. Abro-o e leio que me foi oferecido pelo meu irmão, no dia do meu aniversário, há 10 anos. [Cá dentro encontro também uma folha com um desenho infantil de um bolo de aniversário. Não está assinado. Não sei quem foi o autor. Desconfio das mãos da Catarina.] Não me lembro de ter lido este livro. Dez anos enfiado dentro de uma estante...
«A crista da onda que avança levanta-se num ponto determinado, mais do que nos outros, e é ali que começa a franjar-se de branco. Se isso acontece a uma certa distância da costa, a espuma tem tempo de se enrolar sobre si própria e de desaparecer de novo, como que engolida, para no mesmo momento tornar a envolver tudo, mas desta vez despontando de baixo, como um tapete branco que trepa pela praia acima para acolher a onda que está para chegar. Mas, quando se espera que a onda role sobre o tapete, verifica-se que já não há onda, mas somente o tapete, e mesmo este desaparece rapidamente, tornando-se uma cintilação de areia molhada que se retira veloz, como se fosse empurrada pela areia enxuta e opaca que faz avançar o seu limite ondulado
É o mar que me escolhe, nas palavras do senhor Palomar.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Palavras, Fernando Pinto do Amaral


Da Net

Sentas-te ainda à mesa - escreves
palavras tão compactas, tão opacas
como a luz que te cega. Cada dia
promete o infinito em meia dúzia
de palavras - o amor,
a vida, o tempo, a morte, a esperança,
o coração. Repete-as,
repete-as muitas vezes em voz alta
e escuta a sua música
até não quererem dizer nada.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Penúltima Vivência, Ondjaki




quero só
o silêncio da vela
o afogar-me
na temperatura da cera.
quero só
o silêncio de volta:
infinituar-me
em poros que hajam
num chão de ser cera.
Blog Widget by LinkWithin