A
A r t e
da palavra
[...]Eu reconciliava-me pouco a pouco com ela. De novo se me erguia, fascinante, no seu corpo selado de luto, nas suas mãos agudas, de gestos oblíquos, no seu olhar ilícito e inocente. Sofia falava. Em momentos fulgurantes, pelo meio da noite, ela descobrir também a vertigem da vida, da sua pessoa, da gratuidade desse absurdo milagre, da interrogação para o amanhã "Eu já conhecia tudo". Ou talvez não tivesse descoberto verdadeiramente e só agora, ao aviso da minha palavra, tudo se lhe revelasse em violência, num bater descompassado do coração. Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este "eu" solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse "eu" e a sua descoberta, se o condenarmos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lha razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no seu dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuidade deste milagre de sermos. Que ao menos nós lhe demos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita. Somos cães, ratos, escaravelhos com consciência? Que essa consciência esgote até às fezes a nossa condição de escaravelhos.[...]
Aparição, Vergílio Ferreira, Bertrand Editora, 53ª edição, págªs 84 e 85
5 comentários:
Apesar de saber que este livro existe e de quem é...nunca me apeteceu lê-lo...Valerá a pena?
Pepita, lê! Vale mesmo a pena. Eu adorei este livro.
Beijo
Ops!!!!Sou suspeita!!! Eu adoro este livro e outros...do Vergilio Ferreira (ele era primo direito do meu avô!!!)será por isso????Tem influência certamente...Melo, Serra, Folgosinho??????
Um Abraço!
Por acaso nunca li! Acho que deve ter sido por ser um dos sugeridos nas escolas (a mim calhou-me outro)!
Bjs!
O que eu gosto desta obra!
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