Olho-te. Pergunto-me porque nunca me olhaste. Porque nunca foste capaz de me desafiar, de me mostrar coisas novas. Quando te olho vejo-te agora. Já me esqueci se algum dia existimos antes de agora. Se já nos conhecíamos. Lembras-te do que falávamos? O que nos unia? Sabes o que penso quando penso? Não, não me atormenta apenas a desarrumação que nos envolve, a solidão que se instala indiferente à fúria barulhenta dos dias. Nada me atormenta mais. Sonho apenas com o que teria sido se não tivesse sido esta forma de vida que construímos. Teríamos deixado de existir ou teríamos apenas tomado nas mãos um destino diverso? Não me entendes. Sei-o. Sinto-o. Atormenta-te a pessoa em que cresci? Há demasiado silêncio em mim. Silêncio exterior, porque cá dentro as vozes de mim não se calam. As palavras que me rodeiam, que me ocultam como se fossem um escudo invisível de um qualquer guerreiro do futuro, são-te estranhas. Para mim são entranhas. Não as compreendes e não sabes como atravessá-las. E quererás tu atravessá-las? Olha...há uma palmeira aqui. Faz uma meia sombra sobre o caderno onde escrevo. Uma sombra que se agita e vai alternando o escuro e o luminoso. À minha frente o imenso Azul onde me escondo sempre que preciso fugir de mim. E de ti. Aqui sinto-me eu apenas. Nada mais existe. Eu. Isso agrada-me. Sabes, estou cansada de ser uma espécie de boneco multifunções cujas peças se vão encaixando e desencaixando consoante as necessidades da pessoa que tenho à frente, que se acumulam todas quando lido com muitos ao mesmo tempo. Já pensaste quantas pessoas guardo e faço sair de dentro de mim durante cada dia que passa? Deve ser por isso que não consigo inventar pessoas...eu já sou muitas, muitas e, no entanto, apenas Uma. Gostava que Uma de mim não me atormentasse com os pensamentos que fazem com que a outra de mim se prenda ao que não existe. Mas o Um insiste em perseguir-me. Em querer puxar-me para ele. E se eu já não souber ser Um. Eu sou muitos. Diferentes. Ganha o da Liberdade, o da Vontade de arriscar, o que se continua a sentir maravilhado com o imenso Azul. E a vontade de me deixar ir, sabendo que fico. Sem saber para onde, onde fico.
(ao som de Simon&Garfunkel, ao vivo no Central Park)
2 comentários:
todos os dias cá venho. a tua tristeza atravessa a rede e instala-se deste lado. espero que as tuas leituras e as tuas escritas te animem. gabo a tua coragem de viver para a família. eu não conseguiria. acho que és uma grande mulher por isso.
Independentemente do sentimento que te move, louvo sobretudo a maneira como escreves. Não sou ninguém, além de mim próprio, para realmente comentar aquilo que escreves. Se é bonita a maneira altruista com que vives? Até pode ser. Mas a mim, soa-me muito mais bonito essa liberdade por rebentar que tens dentro de ti...
Beijo grande, oh Pequenina Vera.
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