Com paciência e doçura entrançava-lhe o cabelo. Gostava de a ver assim, aliviada da massa espessa de caracóis que lhe tornava a cara ainda mais afilada e pequena. Quando acabava de o entrançar, coloria-o com fitas de veludo. E depois deixava-a ir.
Da cadeira de baloiço, onde se sentava para ler e bordar, via-a brincar lá fora. Incansável. Dona de uma energia inesgotável. Correndo e saltando até as pernas já não conseguirem acompanhar toda a energia que o cérebro insistia em descarregar pelo corpo fora. Para lhes dar algum descanso trepava, ágil, à casinha da árvore e sentava-se a abanar as pernas para o lado de fora. Acenava à Mãe. Faces rosadas a lembrar as maçãs que o Senhor Rafael, o jardineiro, carregava em cestos de vime para a cozinha. A trança desfeita de tanta correria, as fitas coloridas presas quase por magia aos cabelos que ainda se conseguiam conservar presos no elástico.
A Mãe. Talvez sozinha na sua tarefa de educadora. Talvez apenas esquecida de como era o tempo em que aquela tarefa era partilhada.
Não se sabe. Não o sabe ela, não o sabemos nós que apenas a observamos do lado de cá do espelho onde ela se reflecte.
Sorriso quase imperceptível num rosto dominado por uma tranquilidade infantil, emoldurado por cabelos também presos, também rebeldes. As duas, Mãe e Filha, numa casa onde os quartos serviam para brincadeiras de esconde-esconde e de princesas encerradas em castelos à espera dos seus príncipes encantados que, na maior parte das vezes, eram os sapos que enchiam de coachar o lago do jardim. Uma casa com uma cozinha grande e luminosa, espaçosa e sempre perfumada. Do pomar iam chegando as frutas sazonais que se comiam à dentada, em purés, doces e compotas.
A Joana Cozinheira mantinha-a em funcionamento permanente. A Menina questionava-se mentalmente sobre como seria possível passar dias e dias numa cozinha sempre com tachos ao lume e tabuleiros no forno. Estava habituada a sentir-se segura no meio dos odores, era para lá que corria quando sentia que por qualquer motivo as lágrimas iriam brotar dos seus olhos, mas também ao final de um dia de brincadeira no jardim. Passava em passo acelerado pela cadeira da Mãe e corria a sentar-se na sua cadeira baixinha de assento de palha entrançada junto à Joana Cozinheira.
E era ali que contava as suas aventuras maravilhosas. Os duendes pequeninos e feiosos que com ela escolhiam as melhores folhas secas do jardim, os cavalos alados que a levavam ao outro lado do Mundo quando lhes subia para a garupa, as fadas de chapéus bicudos e varinhas com estrelas na ponta que lhe transformavam os bibes em lindos vestidos de tule e lhe salpicavam as bochechas de purpurinas. Tudo isto contava. Em versões diferentes cada dia, em episódios em que as fadas boas conseguiam sempre vencer os dragões maus que viviam por trás da mata de carvalhos.
A voz da Mãe põe o ponto final. A Menina pede à Joana Cozinheira que se baixe. Quer dar-lhe um beijo. Os beijos que a Mãe a ensinou a dar. Joana Cozinheira afaga-lhe os cabelos. Sente-a um bocadinho sua. A Menina corre para os braços da Mãe que a espera.
As histórias recomeçam...de Mãe para Filha...da Filha para a Mãe...
4 comentários:
Se isto é apenas um treino, vou ficar bem atenta ao espectáculo.
E ainda havia alguém que dizia que a imaginação não brotava pelo meio de dobras de roupa....
Está um encanto, Vera.
... e de ti para nós.
Obrigada, amiga.
Olá Vera! Gosto deste teu visual de Outono!
Gostei muito deste prelúdio. Merece continuação!
Um grande abraço transatlântico!
Isabel
tão bonito este texto, Vera... muito doce e muito perfumado.
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