São 10:25 da manhã. Já fiz algumas coisas em casa. Já olhei de lado para outras, deixando-lhes livre o tempo que não me apetece agora perder com elas. Da estante dos livros sai um Senhor. Olhos azuis, de um azul que o céu não me quer hoje mostrar, cabelos brancos que sabem mostrar que foram louros noutros tempos. Olhar calmo. Pego-lhe com a reverência própria de quem pega em algo valioso, quase frágil, que não se pode manusear com demasiada força, correndo o risco de se danificar. É enorme a admiração que tenho por este homem. De cada vez que dá uma entrevista, rara, concentro-me em cada uma das suas palavras. Todas são ditas com a intensidade de um pensamento profundo, porque é um pensador este filho/psiquiatra/escritor. Impossível lê-lo sem o imaginar como Filho. O primeiro de cinco rapazes numa Família de médicos, de tradição, exigência e costumes. Ao lê-lo e relê-lo aprendo sempre coisas novas, mergulho sempre numa profundidade onde queria poder algum dia existir.
Não é por mero acaso que vou hoje buscá-lo à prateleira onde já reside desde 99. Fui desafiada a encontrar nestas páginas crónicas que descrevam a relação Pais/Filhos e é com imenso prazer que me invisto da função de detective, de descobridora do mistério antunino. Encontro tantas palavras que me tocam. Talvez porque este homem é um conhecedor da pessoa humana e do sofrimento, um conhecedor da dor que vive em corredores e camas de hospital. Está tudo lá, dentro dele e das suas palavras. Grávidas de significados e de imagens mais ou menos perturbadoras. E eu, que ao pé dele, não sou mais do que uma criança que tacteia os livros em busca das letras certas para formar as palavras mais correctas, dou por mim a identificar-me com palavras, com sentimentos e inquietações e a pensar no quanto desejo, na solidão dos meus dias, o equilíbrio do silêncio, o conforto da leitura e da escrita, a despreocupação pelas coisas banais. Às quais vou deitar mãos neste preciso momento.
[..."Para voltar ao princípio acho que terei toda a vida os defeitos de uma criança pequena que deitavam tarde de mais. Preferindo companheiros a amigos e gostando mais de escrever que explicar-me...O que terão de mim daqui para a frente será apenas, se quiserem calar-se para tentar ouvir, o eco atenuado dos meus passos."], António Lobo Antunes, Onde o artista se despede do respeitável público, in Lívro de Crónicas, pagª 131, Edições D.Quixote, 1998
4 comentários:
Não gosto de Lobo Antunes - desse, pois o neurocirurgião, o João, escreve muito bem. O António escreve umas coisas vagas e arbitrárias que passam por frases profundas e livres. Se as lermos com imparcialidade e perguntarmos "o que está aqui dito?" teremos que responder "nada". Leia Emly Brontë, Ian McEwan ou Dino Buzzatti - isso é que são escritores!
Lamento discordar de si.
António Lobo Antunes escreve bem. Talvez não escreva para ser percebido por todos, mas qualquer escritor tem um público próprio, não retirando qualidades às pessoas que optam por este ou aquele estilo literário. A mim, pessoalmente, agrada-me a escrita de ALA. É uma escrita livre, muito baseada na experiência de psiquiatra, da livre associação de pensamentos, palavras e sentimentos. Reconheço que por vezes não é fácil e completamente claro o que escreve, mas a mim agrada-me a escrita difícil. Quanto aos autores que me sugere, conheço-os (à excepção de Dino Buzzatti ) e leio-os. Obrigada, de qualquer modo!
Vera, gostei muito de ler esta partilha sobre ALA. Claro que ALA nao é o Alá, mas António Lobo Antunes, um Alá para alguns. :-) Eu aprecio a linguagem diferente (muito diferente e própria) do autor. Descubri-a mais a fundo o ano passado. Da personalidade!? Sempre que olho para a Judite de Sousa lembro-me dele e da sua famosa pergunta de como era a gravata do senhor que nao tinha gravata. Há gostos para tudo. Gostos nao se discutem. Mas podem-se educar. (Quem quiser dar-se a esse trabalho, claro!)
É O MESTRE!!!
Ninguém escreve como ele, com o coração na ponta dos dedos. Já chorei e ri muito a ler António Lobo Antunes.
Adoro.
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