Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Tempestade [II]


Fotografia gentilmente cedida pelo

E vou descendo. Os meus pés sentem o corpo deslizar sobre a calçada portuguesa molhada, escorregadia, quase untuosa. Dou por mim de frente para o rio. Imensa massa de água que nos dá a cidade da luz molhada. Indiferente a quem passa, a quem me olha, a quem me julga, sento-me no chão. Indiferente às marcas que vou inscrever no casaco demasiado caro que uso por cima de toda a outra roupa demasiado cara com que me visto e revisto todas as manhãs, todos os dias, todos os meses, todos os anos. Que pouco sentido tem tudo isto para mim. Diz-me. Que interesse pode ter para mim se me sujo ou não se não consigo desviar o pensamento de ti, mesmo sabendo que esse é um pensamento que tenho de deixar de pensar.

A ponte. O Tejo. O barulho dos carros que passam no tabuleiro, conduzidos por pessoas indiferentes, apressadas, abstraídas, concentradas ou apenas em gestos automáticos. Não há barcos. Mais um aviso amarelo, ou laranja, não sei. Só sei que este Inverno tem sido fértil nestes avisos que tiram os barcos do mar, os pescadores do seu ganha-pão, os amantes de desportos aquáticos dos seus momentos de lazer.

E voltas tu. Trazes o cabelo preso. Sabes que gosto quando o prendes desalinhadamente com os lápis de carvão com que gostas de escrever. Sabes que adoro quando o soltas e abanas a cabeça para que fique naturalmente despenteado, selvagem, sem risco, sem sinal de ter sido primorosamente escovado. E tu furiosa com a humidade que o encaracola. E eu feliz por o poder enrolar nos dedos.  Estou sentado à beira rio. Acredita, não foi conscientemente que te enviei aquele sms. Precisava de saber que algo te faria lembrar de mim. Sei que não posso fazê-lo. Já mo pediste. Já mo explicaste. Mas também não te posso escrever. Pediste que não o fizesse. Estou resumido à relação profissional. Nós e os livros. Os dos outros. Histórias de amores que terminam sempre bem. Estórias de relações como a nossa. Urbanas, paranóicas, desprovidas de qualquer racionalidade, prenhas de sensualidade e desejo. Como nos deixámos ir nesta loucura? Estaremos loucos ou simplesmente conscientes da precaridade da vida, da efemeridade dos dias? Precisaremos de sentir a adrenalina do proibido ou apenas oferecer-nos a paixão que as nossas vidas "normais", rotineiras e socialmente aceites já não conhecem? Não, não podemos continuar. Sei que te deixo desalinhada quando inscrevo o meu nome no teu telefone, na algibeira esquerda do teu casaco ou dos teus jeans, mas o que queres? Preciso de saber que não me esqueces. Não quero que me esqueças.

O céu continua carregado. Há uma bruma a envolver a ponte e o rio. Não vejo a outra margem. Vejo-te a ti. Chegas, encharcada. Olhas-me nos olhos. Sorris. As mãos no meu rosto, no meu pescoço, no meu cabelo. E o beijo. E o teu corpo encostado ao meu. Abraço-te. Inspiro-te. O teu cheiro. Não digas nada, pedes. Abraça-me forte e deixa-me ficar aqui. Contigo.

1 comentário:

Diário de Lisboa disse...

Vera,
uma vez mais gostei muito de ver a minha fotografia a ilustrar um texto tão bonito e intenso.
É m privilégio. Sinceramente.
Muito obrigado.

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