Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Beijinhos


Sinto a boca a estalar de tanto açúcar.
Miro e remiro a montra da padaria da D. Mariana.
Por entre pães com formatos como espigas, peixes, flores, feitos de massa própria para moldar e enfeitar a montra, alinham-se os tabuleiros das verdadeiras massas, das verdadeiras iguarias. Há o tabuleiro dos suspiros, alvos e frágeis, tapados com papel vegetal para não secarem. Ao lado, o tabuleiro do sortido húngaro. Bolachas redondinhas, metade amarelo, metade chocolate. No meio, um recheio de marmelada. São as bolachas preferidas da minha Avó, as que escolhe sempre, fingindo hesitar, quando chega o dia de visitar a afilhada que mora na outra banda. Na montra virada para a praça estão os sacos dos bolos secos. Os lagartinhos, as areias de cascais, as bolachas de manteiga e as telhas de amêndoa.
Perco-me nestas montras quando, de saco de pano na mão, me mandam ir ao pão. Sabendo da minha loucura por cada um dos seus tabuleiros, a D. Mariana, quando está mais bem disposta ou quando tem menos clientela, oferece-me sempre um "miminho", como ela diz. Ora me dá a escolher, ora escolhe ela por mim. Umas vezes acerta nos gostos, outras vezes passa-lhes ao lado.
"Vá lá Arturinho, é para o caminho!", diz ela na sua pronúncia de quem esteve emigrado fora muitos anos e voltando à terra natal teve dificuldade em lhe (re)apanhar o jeito de cantar as palavras. Com um penteado que me leva a perguntar o que terá ela debaixo daquela armação preta que lhe encima a cabeça, a D. Mariana não é de muitas conversas. Conduz um "fusca" branco com a grandiosidade de quem conduz um último modelo de qualquer marca da moda e enverga sempre uma bata tão branca quanto a farinha que lhe cobre  as mãos. Nunca lhe conheci um ajudante nesta sua padaria que fervilha de clientela às primeiras horas da manhã e à abertura depois do almoço. Quando o quarteirão fica envolto no cheiro do pão acabado de cozer, as pessoas saem com os seus saquinhos de pano e formam uma fila defronte do balcão.
Os bolos que namoro não são fabricados na padaria. Disse-me a D. Mariana que vêm de uma fábrica na baixa lisboeta. Sei o dia em que chegam. Fixei-o sem precisar de assinalar no calendário pequenino, do Sporting, que a minha Avó me ofereceu para que nunca esqueça a data do seu aniversário. No dia em que a carrinha dos bolos estaciona no bairro, invento mil estratagemas para ir à padaria. Inspecciono a caixa do pão, azul clara, de melamina, em cima do balcão de mármore da cozinha. Inspecciono no frigorífico a caixinha onde se guarda o fermento fresco. Doido por que falte qualquer coisa, corro para a minha Avó, pedindo a moeda, o passe de entrada na padaria, na fila dos bolos. Nem sempre consigo, mas quando a moeda é depositada na palma da minha mão e os lábios suaves da minha Avó se pousam na minha testa enquanto, simultaneamente, me beijam e murmuram “Vai lá, compra meia dúzia de beijinhos”, deliro! Saio porta fora a correr, sabendo que da janela da cozinha a Avó fica a ver-me chegar à padaria. Apanho o elevador e acho-o lento no seu percurso do 7º andar ao rés do chão. Apetece-me dar saltos para que ele ande mais rápido. Como uma seta, afogueado e sem fôlego, só paro diante da D. Mariana e do seu grande cabelo preto e armado.Ponho a moeda em cima do balcão e aponto com o dedo para os bolinhos de açúcar pigmentado, várias cores, a lembrar as cores dos meus berlindes de vidro. Sorriso silencioso. Assentimento com o olhar. A pá metálica dos bolos. A embater no açúcar. Eu a pensar que se vão desfazer com aquele instrumento tão pouco delicado.
Estende-me o saco transparente, colorido com as cores dos beijinhos.Solto um obrigado feliz e saio tão rápido quanto entrei. Aceno à Avó que me vê da janela. Sento-me no banco de jardim e deliciado trinco vagarosamente beijinho a beijinho.
Já não moro naquele bairro. A minha Avó já não é viva. Não sei se a padaria ainda existe. Nunca mais recebi beijinhos como os dela, nunca mais comi beijinhos como os da padaria da D. Mariana. Persistem as memórias. De dias da infância, na cidade, felizes.

1 comentário:

vera disse...

uhm, até sinto o cheiro dos bolos quentes ! areias , que bom !

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