Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

terça-feira, 11 de maio de 2010

FUSÃO [inversamente proporcional]


I. Ela entrou. Virou-se para o espelho. Tirou os óculos escuros, passou a mão pela zona das olheiras que lhe cavavam fundo os olhos tristes. Desistiu e voltou a pôr os óculos escuros. Melhor assim, para que ninguém testemunhasse o que na alma se passava. Carregou no botão. O elevador estremeceu ligeiramente e iniciou a subida. As portas de grade, de lagarta, sucediam-se e entremeavam-se com pedaços de parede onde, pintado a preto, um número ia identificando andares. Subia o elevador e no estômago apertava-se cada vez mais o nó. Não sabia o que ia encontrar quando o elevador parasse. Talvez nem conseguisse abrir a porta de lagarta, enferrujada, chiante. Talvez se limitasse a abri-la ligeiramente e voltasse a fechá-la para poder carregar no botão que a devolveria ao piso térreo e à rua. Talvez até desmaiasse ali. No chão do elevador de 1 metro por 1 metro, com uma porta de lagarta, um espelho testemunha de olheiras e um painel antiquado de botões a marcar os andares, sete.
II. Ele entrou. Virou-se para o espelho, à direita. Passou os dedos pelo cabelo encaracolado, curto e bem aparado. De seguida rodou a cara ligeiramente para a direita e para a esquerda, observando a barba. Olhou-se a si mesmo nos olhos. Fundo, tentando perceber o que ele mesmo não percebia quando pensava nela. Porque razão a perdera. Porque razão a deixara tão só ao ponto de a perder. Retomava palavras, gestos e silêncios, procurando o ponto em que os silêncios se haviam tornado incómodos, pesados, silenciosos e gritantemente reveladores da dor que no peito dela se instalara. Via-a ir, dia após dia, não conseguindo puxá-la para si, abraçá-la, amá-la, como fizera no princípio de tudo. Incomoda-o esta dor. Pensa nela sempre calada e não percebe o silêncio. Convence-se de que existe algo escondido por trás deste silêncio em que se mergulhou, que se impôs a si mesma e a ele. Ainda a deseja. Na realidade desconhece se o que sente é desejo ou apenas o sentimento de querer mostrar uma atracção que se deixou afogar nos silêncios sucessivos dos dias. A introspecção não é o seu forte. Prefere não pensar, prefere continuar na ilusão de que o silêncio se vai desmoronar um dia destes e ela vai voltar a rir ruidosamente, vai voltar a falar até perder o fôlego e ele vai voltar a apaixonar-se por ela.
III. Tal como iniciara a subida também soluçante foi a pausa do elevador. O nó no estômago estava agora a subir, a garganta doía-lhe, apertada pela força com que continha lágrimas que não queria soltar. Voltou a tirar os óculos escuros. Olhou-se a si mesma nos olhos. Fundo, para se dizer a si mesma que a decisão tomada era a decisão irreversível que poria fim a um capítulo de vida. Compôs o cabelo com as mãos. Achava-o horrível. A seguir a tudo isto terminar iria mudar também a forma como se mostrava aos outros. “Estás tão magrinha, está tudo bem contigo?” tinha-lhe dito alguém que com ela se cruzara na véspera. Que sim, que estava tudo bem…mas os olhos que sempre a traíam insistiam em dizer ao mundo que nada estava bem. Tudo iria ficar bem. Sabia que ele a tentaria demover desta decisão, que lhe diria que a culpa era dela, que ela é que estava estranha, que ela é que o afastava. Sabia que tinha de encontrar dentro de si própria uma força que talvez não conseguisse encontrar. Talvez até não conseguisse evitar as lágrimas. Isso é que a irritava!
IV. Será que ela desistiu? Será que não vem?
V. Será que consegue?
VI. Passa after-shave na cara, um pouco de creme nas mãos. Conserta o colarinho da camisa e sai da casa de banho. Dirige-se à porta de entrada, no extremo oposto do corredor. Enquanto anda, as tábuas de soalho rangem-lhe debaixo dos pés. Quase o incomodam. Vai de cabeça baixa. Quer encostar-se à porta e esperar o barulho do elevador a soluçar quando parar no seu destino. O sete.. Senta-se, no chão, de costas para a pesada porta de carvalho castanho escuro. Encostado à porta. A cabeça apertada entre as mãos. Espera.
VII. Conserta a écharpe que lhe compõe o decote demasiado aberto para a temperatura que teima em não subir e sai do elevador. Corre delicadamente, quase com amor, as lagartas enferrujadas da porta. A luz da clarabóia de vidro é esparsa. Um arrepio de frio fá-la encolher os ombros. Por momentos pensa nele. No abraço que já não existe espontâneo e carinhoso. Sacode o cabelo e vira à esquerda. Os saltos ecoam na lage do chão. Chega à porta. Pesada, de carvalho castanho escuro. Chega à porta. Pesada, de carvalho castanho escuro. E às narinas chega-lhe o odor do after-shave tão familiar. Tremem-lhe as pernas. Sente-se soçobrar à dor que tem vindo a conter.Não consegue conter a dor que lhe invade o peito, que lhe faz rebentar a cabeça, que lhe retira a visão. Encosta-se à porta e por ela se deixa deslizar até ficar sentada no chão.A cabeça apertada entre as mãos. Espera.


Fica escuro. Tudo escuro. Tudo acaba…
Porque o silêncio não é de ouro. O silêncio, mata!

1 comentário:

Vera disse...

é angustiante mas é também porque está muito bem escrito !

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