Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Viagem



Apetece-me contar-te um segredo. Nunca viajei. Uma viagem com carácter de viagem a sério. Malas. Roteiro programado em casa em mapas de papel e sites que recomendam o que ver, onde parar. Estranho, não é? Agora que ponho em palavras este pedaço de mim, reconheço-lhe a estranheza. Como se pode nunca ter saído de um pedacinho pequeno de terra banhada pelas águas e encostada a terras maiores? Não sei. Acho que nuca calhou. Acho que a vida que desenhei no meu papel de aguarela interior nunca quis que a viagem acontecesse. E como nunca a desenhei, também não reflicto sobre ela. Por vezes assola-me a vontade de ver outras pessoas. Pessoas que falem uma língua que eu não compreenda, que me obriguem a usar gestos e capacidade imaginativa para me expressar. Não sei porque não tenho em mim a vontade de viajar. Talvez não me sinta, afinal de contas, tão enclausurada como sempre me penso. Pergunto-me quantas pessoas já conheci desde que me conheço. Será que se me concentrar nesse exercício conseguirei recordar uma a uma cada uma das pessoas que comigo se cruzou? E os nomes? Como poderei atingir um estádio de concentração e de introspecção que me leve a cada um deles? Esta também é uma viagem. Só que infinitamente interior a mim. Onde de cada vez que mergulho descubro novos caminhos, novas ruelas, novos largos onde me sento a descansar. Os viajantes, os que viajam pelo mero prazer de descobrir novas gentes e novos locais, confessam-se cansados quando regressam ao porto seguro da sua origem. Com brilho nos olhos de quem viu mais e diferente, de quem contactou com outros costumes e outras gentes, mas cansados. Ansiosos pelo cheiro das suas casas, pelo conforto dos seus aposentos, pelo hábito das suas rotinas. Também eu me descubro assim depois das viagens no interior de mim. Como se o simples acto de pensar me pudesse cansar demasiado. Mas não pensamos nós a todo o momento? Mas será que existem pessoas que conseguem não pensar ou pensar em pensamentos que não as cansam, que não as dividem, que não as tornam permanentemente insatisfeitas e pequeninas aos seus próprios olhos. Oh...como  gostava de conseguir não viajar em mim, tal como consigo não viajar de mapa e roteiro feito. Impossível. A escrita tem, neste pensar incessante, uma culpa que não lhe pesa. Pela palavra escrita me vou viajando, me vou descobrindo de sombras que me criei para não me ver. Descubro-me e desejo que outros me descubram. Que sem mapa ou roteiro encontrem o caminho que já deixei meio aberto entre as silvas que aos poucos foram ladeando os meus caminhos. A minha paixão. As palavras. Os outros. Que me importa que outros pensem quem serei, amante de gente, muita e diferente. É a todos os outros que vou buscar os pontos turísticos das minhas viagens em mim. Impossível não encontrar em cada um dos que me apaixonam um ponto. Um só que seja. São pontos que acumulo no traçado do meu mapa como quem viaja pelo mundo vai espetando alfinetes coloridos que marcam cidades e países já visitados. Pode ser a forma de olhar. Mas também pode ser o que lhes faz brilhar os olhos. Pode ser a fala das mãos. Mas também pode ser o acariciar do cumprimentar quando chegam. Sim, eu sei. Sou um destino demasiado complexo para ser entendido a tempo inteiro, de cabeça vazia. Existem muitos pontos por explorar, muitos locais e lugarejos que para serem visitados têm de ser primeiro muito bem estudados. Nem eu sei da existência deles, porque nem sempre o tempo me sobra para viajar apenas pelo conhecimento. Agora, aqui, enquanto sentada a teu lado te inundo com estas palavras confessionais, viajo pela minha capacidade de me expor, sem medo, de fazer de ti meu confessor, sem temer pelo que os teus pensamentos te possam dizer em palavras que talvez nunca me vás transmitir. Percebes agora porque nunca saí deste cais onde nos sentamos lado a lado? Não é o desconhecido que me assusta, nem mesmo a profundidade das águas que me refreia o ímpeto da viagem. Nem o enevoado das nuvens que retiram ao Sol o calor de que dependo como do ar que respiro. Sou eu que me preciso. O Mundo que vive em mim ainda se encontra inexplorado, ainda me oferece muitas horas a palmilhar caminhos por onde, sei, que devo viajar. Guarda o meu segredo. Viaja em mim. E se nenhuma destas palavras te fizer sentido, arruma a bagagem rapidamente e volta para o porto seguro de ti.

3 comentários:

Kat disse...

Amazing

Unknown disse...

Confesso que nunca fui amante de grandes leituras, e quando era tinha sempre a mesma linha. Desde que tenho acesso a este teu blog és a minha leitura matinal. Adoro ler o que escreves. Espero que conserves esse teu DOM. Obrigada.

Carlota disse...

Estive a "espremer" a minha cabecita para tentar verbalizar aquilo que senti quando li este teu texto. Infelizmente não tenho a tua capacidade. Sou muito mais telegráfica por isso só consigo dizer-te isto: BELO.
Beijos
Andas mesmo inspirada!

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