Daqui |
As ruas são-lhe familiares. Percorre-as diariamente nos seus percursos do Metro para o local de trabalho, do local de trabalho para o Metro. Nunca viveu na cidade e isso fá-la sentir-se um pouco inferiorizada face a colegas de trabalho, amigos recentes. Sabe os nomes das ruas por onde passa todos os dias porque os seus olhos não se cansam de captar do mundo tudo o que lhes é possível abarcar, porque a sua memória, mais do que fotográfica, tem quase características de uma potente máquina capaz de armazenar muitos dígitos de informação. Quando observa os seus colegas de trabalho, nascidos e crescidos na cidade, sente-lhes uma urbanidade latente. Sabem nomes de lojas antigas, recordam comércio tradicional de tempos de infância agora substituído por dependências bancárias ou espaços comerciais multidisciplinares. Recordam esplanadas onde eram passadas as horas em que os professores faltavam ou em que, eles, alunos, decidiam dar uma folga a si próprios, trocando salas de aula cheias de gente (ainda não existia o "trauma" das turmas grandes) por cadeiras de metal com assentos em barras de madeira e cafés e tostas mistas, conversas, risotas e os primeiros cigarros (longe ainda da Lei do Tabaco). Como gostaria ela de ter também destas memórias. Nascida e criada nos arredores, naqueles arredores que nem sequer têm o charme de zona de elites, as suas memórias não passam de uma pequena terra, cheia de prédios de pintura escurecida pelo tempo e pela poluição, de uma escola suficientemente perto da porta de casa para que não houvesse outra hipótese quando um professor faltava. De chave na algibeira das calças de ganga sem marca, o destino de uma hora de "furo" era sempre o apartamento alcatifado, pequeno, com o cheiro característico de uma casa de fumadores, com a gaiola dos canários cantadores na marquise feia da cozinha não menos feia. Sim, estas são as suas memórias. Como dizê-las alto à frente dos seus colegas de trabalho, alguns perto do conceito de amigos? Impossível. Também não inventa outras. Não se sente suficientemente ousada para tal. Limita-se ao silêncio ou à saída estratégica quando as conversas começam a ameaçar incluí-la. Hoje está atrasada. Uma greve dos transportes públicos transforma-lhe em plural o que costuma ser o percurso de uma hora. Decide aproveitar. Sozinha, na cidade que só conhece dos seus anos de adulta, decide experimentar a sensação que outros conhecem desde sempre. Passeia-se pelas ruas calcetadas onde os saltos dos sapatos se encaixam, se estragam, se entortam. Atenta aos motivos que as pedras mais escuras desenham nas brancas da calçada. reconhece caravelas. As quinhentistas. As que levaram Portugal ao Mundo e trouxeram mundos ao Mundo. Reconhece corvos. Os corvos zeladores de S. Vicente. Com os olhos de quem vê pela primeira vez maravilhas nunca vistas, descobre um local onde lhe apetece sentar-se. Sem saber porquê, através da montra, fazendo sombra sobre os olhos para ultrapassar os reflexos que o sol faz nascer no vidro, vê uma mesa que lhe lembra uma carteira de escola, cadeiras que também poderiam pertencer a uma qualquer sala de aula do seu tempo de estudante. Entra e senta-se. Percebe que é mesmo ali que lhe apetece sentar-se. A ler. A desenhar. A faltar ao emprego como se aproveitasse um "furo" de falta dada pelo professor mais aborrecido do ano lectivo. Pousa a mala na cadeira vaga. Varre o espaço circundante com os olhos e num lampejo de pensamento põe a hipótese de ter a capacidade de "varrer" o que não lhe agrada à sua volta só com o poder do olhar. Sorri. Sente-se uma verdadeira adolescente, imaginando cenas fantásticas e impossíveis de acontecer. Tira o seu caderno de papel liso e o lápis de carvão de dentro da mala. Ensaia traços e manchas. À margem junta palavras que lhe servem de inspiração para continuar o desenho. Distrai-se. O lápis rebola na mesa e cai ao chão, desliza para debaixo da mesa, acorda-a dos pensamentos em que se perdera. Dobra-se sobre si própria, por debaixo da mesa, para apanhar o lápis fugídio. Os olhos sempre atentos desviam-se para um papel dobrado por baixo de um dos pés, metálicos, da mesa. Não resiste. Tira-o. Desdobra-o. "Almoça comigo". Duas palavras. Transforma-as em suas. Junta-as ao desenho e inicia uma história de amor tendo por palco a cidade.
3 comentários:
LINDO!
Não tenho adjectivos! Está muito bonito Vera, a sério!
Continua.
Uau!
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