eu concilio. sim, vou fazendo os possíveis... para dizer a verdade, não sei muito bem o que é isso, conciliar. só se for andar sempre a correr de um lado para o outro, nem sei bem para quê. o dinheiro não chega para nada, demoro duas horas a chegar ao emprego, primeiro ainda tenho de deixar a miúda na ama. entro às nove. almoço da uma às duas e meia. almoço é como quem diz... trinco uma sandes, engulo um prato de sopa, aproveito para fazer umas compras, o tempo passa num instante. há tardes em que faço tudo o que há para fazer e por volta das quatro fico a olhar para as paredes. um dia, atrevi-me a perguntar ao patrão se não podia sair um pouco mais cedo. estava sol, apetecia-me ir buscar a miúda, coitada!, sai sempre da ama tão tarde, mal dá para nos vermos... achei que podíamos ir ao jardim, comprava-lhe um gelado, sempre era diferente do que metermo-nos num autocarro apinhado, em hora de ponta, e chegar a casa quase de noite... mas olharam para mim como se eu fosse atrasada mental, ou como se estivesse a abusar da sorte de ter um emprego, e nunca mais pedi nada. saio pelas seis, chego à ama por volta das sete, às vezes mais tarde, depende do trânsito. às oito, tenho de estar a fazer o jantar, ao mesmo tempo que dou banho à miúda, que jeito me davam mais dois pares de mãos... depois é metê-la na cama, nem tenho cabeça para histórias, pôr a roupa na máquina, estendê-la, arrumar a cozinha. com sorte, ainda espreito a novela, mas é rara a noite em que não me dá para adormecer no sofá...
tu concilias. és fantástica, tu! nem sei como é que consegues... com três crianças e um lugar na administração da empresa... não dás em maluca? é claro que teres uma carrinha que os leva e traz da escola ajuda muitíssimo. e a tua empregada é uma querida com eles! ainda no outro dia a encontrei na piscina com o Martim... ou terá sido no ballet, com a Carlota? olha, já não me lembro... mas é uma querida. ajuda-te imenso, não é? imagina que tinhas de andar com os três para trás e para a frente e logo agora, que estás separada, isso e mais a empresa... era uma estafa! e a baby-sitter também é amorosa, não é? depois hás-de dar-me o contacto... noutro dia, liguei para tua casa e ela atendeu e disse-me que tinhas ido a um jantar e pareceu-me mesmo simpática... e o teu ex-marido, o que é feito dele? pelo menos vai buscar as crianças ao fim de semana? é que se nem ao fim de semana descansas, vais mesmo acabar por dar em maluca!!
ele concilia. ele?! deixa-me rir... ele chega sempre a casa tardíssimo! e sempre quando os miúdos já estão a dormir, é raro o dia em que os vê... raramente me ajuda, diz que tem mais que fazer! eu levo-os à escola, eu vou às compras, eu ponho a roupa a lavar, eu arrumo e, além disso, trabalho! ele, quando muito, muda uma lâmpada, é capaz de fazer um churrasco quando os meus pais vêm cá almoçar e está bem que há um dia ou outro em que até deixa os miúdos na escola e que aos fins-de-semana joga à bola com eles, mas vê lá se alguma vez desmarcou alguma coisa lá no trabalho ou se meteu um dia de baixa quando ficaram doentes? ou quando nasceram? ok, ok... tens razão, quando nasceram, ficou aqueles três dias em casa e até é verdade que às vezes quer fazer mais e sou eu que não deixo... mas se faço melhor e mais rápido, para quê enervar-me? de cada vez que se oferece para arrumar a cozinha, aquilo fica transformado num lago! e sempre que tira a roupa da corda enrola tudo num bolo que atira para o cesto... é a isso que chamas conciliar?!
nós conciliamos. nem podia ser de outra maneira. trabalhamos as três na mesma empresa, é certo que cada uma com as suas funções, mas sabemos fazer as coisas umas das outras e assim sobra mais tempo. quando a Vera tem de ir buscar os miúdos mais cedo, eu e a Teresa saímos mais tarde. quando a filha da Teresa faz anos, e se não houver muito trabalho, ajudamos na festa. e até quando sou eu, que não tenho filhos, apenas um gato, e fico com uma daquelas dores de cabeça na cama, as duas dizem-me sempre 'descansa e recompõe-te que nós seguramos as pontas, Sofia'. é verdade que o facto de a empresa ser nossa estimula e ajuda. mas, na empresa, há outras pessoas que também têm tolerância de horário, desde que cumpram as suas responsabilidades, é óbvio. e temos mais empregados do que é costume, pois muitos só trabalham meio dia. ganham menos, mas acho que preferem assim. e não é simplesmente por terem mais tempo, mas porque assim se reconciliam mais facilmente com as suas vidas...
vós - governantes, patrões, sindicatos e afins -, que tantas vezes não conciliais coisa nenhuma para além de leis, truques, falácias, poderes e papéis e contratos a prazo, fazei por favor com que tudo flua mais facilmente... será que custa assim tanto?
eles conciliam. de manhã, é ele que leva as crianças à escola. à tarde, é ela que as vai buscar, a não ser que haja um imprevisto de última hora e, nessa altura, telefona-lhe e ele, normalmente, consegue acudir-lhe. dividem as compras, as contas, os planos. dividem os banhos, o colo e o riso. ela prefere que seja ele a fazer o jantar, no fim é ela quem põe a loiça na máquina e que arruma a cozinha. quando ele vai viajar em trabalho, ela prepara-lhe a mala, quando é ela quem vai, ele ajuda-a a fechá-la. costumam ir juntos ao pediatra, às festas da escola, à praia, ao jardim. de vez em quando, deixam os filhos em casa da avó e vão os dois sozinhos jantar. ele costuma deitar as crianças. ela vai aconchegar os lençóis e contar uma história. nem percebem por que razão conciliar ainda é um verbo difícil...
Fonte: Inês de Barros Baptista
1 comentário:
Bonito!
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