Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Momentos, I

Uma casa normal, branca. Numa esquina de uma terra que conhecia e amava desde criança. O telhado que terminava num rendilhado verde, verde como a varanda onde se sentava a ler quando o sol aquecia aquela esquina um pouco sombria.
Quando se sentava nesta varanda o coração acalmava. Aquele coração que já vivia há tantos anos com tantos sobressaltos.
A sua própria vida que, interiormente, a sobressaltava com pensamentos, fantasmas, loucuras.
Os anos passaram sem que quase desse por isso. O espelho ia-a avisando que os estragos do tempo ficariam gravados e nunca mais a largariam. O sol que adorava e que lhe cravava a pele de rugas. As preocupações que a faziam franzir a testa e marcar mais uns pontos…
Agora, tudo isso acabara.
Os filhos crescidos, o marido dedicado aos seus hobbies a tempo inteiro. A ela restava-lhe o poder das recordações, a cozinha, a escrita, a leitura…os netos.
Oh…como ela gostava de os ter por perto. Toda a vida tinha havido crianças na sua vida e não sabia viver sem elas. Com a idade aprendera a não dar tanta atenção a brigas e discussões. Agora sabia que tinha que as deixar acontecer.
As crianças davam-lhe a força que já lhe começava a faltar. Gostava de as sentar ali, na varanda, com os livros de histórias, com as canetas e os papéis. Às vezes, maior parte das vezes, os livros acabavam por ficar fechados porque a conversa era sempre como as cerejas e quando Avó e Netos se juntavam tudo tinha que ser conversado.
E as mãos…e os abraços…e os beijos…tão doces, tão autênticos.
Para ela eram o orgulho máximo! Criar e passear netos na terra que a tinha visto crescer!
Quando os Filhos eram pequenos, o dia-a-dia quase não lhe dava tempo para saborear infâncias. Na sua cabeça ficavam gravados os momentos, as palavras, as vontades, mas a corrida!
Estes meninos pequeninos, agora, enchiam os seus dias. De barulho, de alegria, de vontade de fazer coisas, de inventar histórias e passeios. A idade nunca a assustara e nunca fora, na sua vida, limite ao que lhe apetecera fazer. Muitas vezes pensava que devia proibir-se de algumas coisas, mas ficava-se pelo pensar…hoje em dia acontecia o mesmo.

- Anda, senta-te aqui no meu colo. Hoje vamos só observar quem passa e inventar histórias para cada uma das pessoas.

E num ápice surgiam gargalhadas. Eles herdaram dela aquele espírito crítico, divertido.

- Vamos à praia…please…
- Não, ficamos aqui, baloiçamo-nos na cadeira e falamos sobre a praia. A que cada um de nós vê. Eu falo da que vive dentro de mim, tu falas da das tuas brincadeiras, pode ser?

Outra vez as memórias…um Verão há muito tempo…um cruzamento de pessoas que ao conhecerem-se tiveram a noção de que havia algo que as prendia uma à outra, se se pudessem prender. Uma amizade que foi sendo construída aos poucos, devagarinho, porque entre eles havia sempre aquilo que não podia existir. De repente, a vida inundava-se de dúvidas, sobressaltos, vontades inconfessáveis, mas havia que continuar em frente com um projecto que estava bem definido na sua cabeça e onde não havia lugar para abandonar trajectórias e optar por atalhos.

- Tu amas a praia, não é Avó?
- Sempre, não há nada melhor que a areia nos pés, as ondas a bater…mesmo que o sol não se mostre. O mar, na sua quietude traz-nos paz e calma, a raiva das marés ensina-nos como a natureza é poderosa e deve ser respeitada. Tu sabes que eu adoro ondas, mar forte.

Calavam-se. Respeitavam-se nos seus silêncios. Nos seus vazios, tão cheios de intimidades. Adoravam-se como Avós e Netos se devem adorar, com o amor não espartilhado pelas regras e proibições, com a proximidade que só o Amor consegue criar entre as pessoas. Tinha sido toda uma vida a procurar a ternura, a estimular a amizade, a cultivá-la. Mas as pessoas eram tão diferentes, tão medrosas no acto de se darem.

Era esta forma “livre” de estar na Vida que tinha querido sempre transmitir aos Filhos e que gostava que os Netos fossem assimilando. A Vida passa depressa demais, corre por cima de nós e quase não nos deixa respirar. Quando conseguimos parar para pensar vemos que já passaram anos que não voltarão e nos quais houve tanta coisa que ficou por fazer, tantas palavras por dizer . Durante o tempo que a nossa Vida dura deveríamos ter a coragem suficiente para encarar tudo o que fosse surgindo, vivendo cada minuto como se de uma hora se tratasse e pensar que há tanto para viver para além do lado material da vida.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uff! Fiquei sem fôlego, grande momento.
Como lhe chamaste "Momentos, I" presumo que outros se seguirão.

Fico atentamente à espera ;)

Bjs

Gaby

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