Saio para a rua bem cedo. Para aproveitar o fresco da manhã, a claridade que só dura enquanto o Sol não me ofusca, o canto dos pássaros enquanto o calor não os silencia na sombra dos ramos onde se anicham.
Não levo livro companheiro de todas as horas e muito menos papel em branco e material de escrita. Vou ser um verdadeiro observador do que todos os dias me escapa por andar com a cabeça enfiada nas nuvens dos meus escritos e das minhas leituras. Preciso de me aperceber do que me rodeia e a verdade é que a realidade me escapa no turbilhão dos meus pensamentos.
A cidade atordoa-me. O barulho do trânsito, a azáfama de pessoas sem rosto, uma massa em vai e vem constante, quase alucinado.
Os meus trajectos, apesar de curtos, são feitos, propositadamente, de transportes públicos. O livro abre-se assim que o primeiro pé é pousado na gare do Metro e só se fecha quando saio do subterrâneo para a luz do dia. Já estou treinado na leitura em andamento. Não me causa enjôos, nem preciso de parar para subir ou descer escadas com toda a segurança. Se, por mero acaso, as páginas são escassas, tenho sempre o meu plano B. Um caderninho e um belo lápis de carvão. Se não tenho mais palavras para ler, tenho-as de certeza para escrever e não me acanho. Escrevinho, escrevo, desenho ou risco simplesmente. Preciso é de não ver. Sei que alguém que escreve, ou pretende escrever, deve observar, deve tomar notas de feições, atitudes, comportamentos, locais, mas eu retraio-me perante este trabalho de campo.
Já disse, a cidade atordoa-me.
Vou andando...Tenho que a aprender.
Se o conseguir, conseguirei também ultrapassar a estranheza que me invade quando olho para os prédios. Lembram-me caixas enormes. Caixas de frigoríficos onde um x-acto recortou umas aberturas. Não entendo como podem as pessoas viver dentro destas caixas. Apertadas em quadradinhos pequeninos, sem poderem fazer barulho sob pena de terem cabos de vassouras a bater nos tectos ou nos soalhos, ouvindo todos os sons que as outras pessoas fazem nos seus quadradinhos.
Agora que a vejo com os olhos atentos de um observador, narrador, reconheço que nunca tinha reparado na beleza que encerra. Os prédios são velhos e a pedir tinta, as varandas têm um ar triste de quem há muito tempo não é usada para o seu devido propósito, mas são distintos. São caixas onde parece existir coração a bater e sentimentos a explodir se os deixarmos. E a luz? A luz desta cidade ao amanhecer é uma luz sem igual. Não sei se é a proximidade do rio que a transforma numa claridade embaciada quando a cidade acorda, se é apenas o Sol que a quer mostrar numa beleza que lhe vem da altivez própria da idade. Sei que olho em meu redor e pergunto quantas histórias existem escondidas nas pedras da calçada, nos prédios pombalinos, nos becos e escadinhas da cidade das colinas. Histórias que não tenho querido ouvir, que tenho descartado por me achar superior ao bulício de uma cidade que se entranha pelos meus poros e que me faz apaixonar...
4 comentários:
Não consigo ter paixão por Lisboa, a cidade onde nasci, embora a aprecie.
Além disso, sou mais de campo que de cidade.
;-)
Também gosto de Lisboa, mas não da Lisboa Turística. O que gostei mesmo foi do último parágrafo do teu texto.
Kat
texto lindo!
Acho ainda não ter esse olhar observador, perco-me nos pensamentos também... Perco-me nas ruas e deixo-me ir, simplesmente ir.
Afinal não sou a única que tem Lisboa guardado na memória, sempre com novas surpresas, novos segredos, novas pessoas, novas palavras...
Lisboa é assim...misteriosa
Não sei se consigo gostar tanto de Lisboa como gosto do Porto. Conheço mais ou menos bem e passei férias aí muitas vezes. Gosto e gostava de voltar assim que possível, mas morar no centro, como o meu irmão fez durante uns anos, acho que não.
Ainda assim, gostei e muito da tua descrição. ;)
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