...saber escrever de olhos fechados. Associar ideias e juntar palavras formando frases gramaticalmente perfeitas e sinteticamente impolutas. De caneta de tinta permanente na mão direita e mata-borrão na mão esquerda, cobrindo folhas, umas atrás das outras, com a minha letra invejavelmente certa e trabalhada. Quem me dera ter muitos cadernos cheios desta letra, onde em dias de menor inspiração ou de fraca capacidade de observação iria buscar matéria para dizer ao mundo que a minha produção é inesgotável. Quem me dera conseguir abstrair-me das tarefas comezinhas do dia-a-dia, ser uma verdadeira escritora, genial. Conseguiria não ver camas por fazer, pó por cima dos móveis, cotão a formar-se nos cantos, roupa a atafulhar o cesto da roupa suja e outra a atafulhar estendais e o móvel da roupa para engomar. Ah...como eu seria feliz! Se eu soubesse escrever de olhos fechados e de olhos fechados alienar-me das tarefas comezinhas da vida, seleccionaria em cada dia um "spot" inspirador, porque há tantos no sítio onde vivo. De frente para o mar ou em observação dos que passam para lá e para cá em ruas que palmilham nos seus afazeres diários, eu iria encontrar palavras de ponto de partida para escritas infindáveis. Eu gosto de me imaginar escriba. Vejo-me nessa tarefa árdua de trazer para outros olhos o que os meus olhos interiores rebuscam em gavetas que só eu sei abrir. Gavetas que por vezes estão perras, mas quando se deixam correr soltam odores de sacos de alfazema que as perfumam e enxotam para longe os maus olhados que gavetas fechadas podem atrair. Neste momento escrevo sentada numa cadeira, na cozinha, tendo como secretária uma tábua de pão encaixada dentro de uma gaveta aberta. Eu posso escrever em qualquer lado. Qualquer lado é bom para soltar ideias e palavras ao mundo. As palavras nem sempre são as melhores, mas são as minhas e, tal como os filhos, amo-as "no matter what".
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