Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Corações em Olhar Azul Petróleo


Casei num dia de chuva. Inverno. Muito frio e muita chuva, cumprindo a tradição de que boda molhada é boda abençoada. Numa igreja pequena, muito pequena mesmo, no meio do Alentejo. Terras planas a perder de vista, salpicadas de sobreiros, salpicadas de sombra. No dia do meu casamento chovia. O chão de lage cinzenta da igreja brilhava, húmido e gasto dos passos, dos joelhos pagadores de promessas. Ainda bem que a Igreja da minha terra é pequena. Nem assim a consegui encher no dia do meu casamento. Eu metida num vestido de noiva que um dia foi branco e assistiu a um sim mais convicto do que o meu. Um vestido branco já encardido pelo tempo, pela naftalina das arcas, pela humidade dos Invernos alentejanos. O meu Zé. O homem que me tirou de uma autoridade para uma outra autoridade, masculina. Muito direito. Desconfortável no fato domingueiro, nos sapatos brilhantes de verniz trazidos da cidade capital por um qualquer padrinho endinheirado, antepassado. O cabelo empastado de brilhantina, o bigode retorcido nas pontas aparadas, "um verdadeiro manequim de montra de loja", nas palavras do Ti'Alfredo Barbeiro. Nos bancos as comadres, os compadres, as crianças ataviadas de fitas e gravatas, vestidas com roupas compradas na feira quinzenal. Não tendo Pai que me acompanhasse ao altar, entrei só. Primeiro a medo. Receosa do destino a que me levavam os passos que dava, desejosa por dias em que pudesse dizer-me dona de uma vida. A nave da Igreja, tão curta, cruzei-a em poucos passos titubeantes. E o meu casamento parecia um funeral. Todas as mulheres vestidas de preto, lenços pretos grossos nas cabeças, saias pretas. O padre Tomé. Velho, encarquilhado pelo calor alentejano percorrido na garupa dum burro tão velho quanto ele, tão enrugado quanto ele. Franciscano, enfiado no hábito castanho, grosso, atado na cinta por um cordão grosso, sandálias nos pés enregelados pelo frio alentejano emanado das lages cinzentas e polidas. Olhou-me nos olhos quando me quedei à sua frente, pronta para o ouvir, desejosa de poder dizer o "sim" que me levaria a outra vida. E só nessa altura reparei na cor dos olhos do franciscano não tão velho como eu o desenhava na minha cabeça, não tão enrugado pelo calor alentejano. Um azul estranho e penetrante. Lia-me o pensamento e eu sentia-me lida por ele, pelo azul dos seus olhos. Iniciou a cerimónia. Palavras e mais palavras que me fugiam dos ouvidos porque simplesmente não as ouvia, não as percebia. O meu pensamento estava no homem que a meu lado se aprumava no fato domingueiro e nos sapatos de verniz apertados. No pouco que sabia dele, no muito que acreditava vir a viver com ele. No que falaríamos quando ficássemos sós. No que faríamos quando ficássemos sós. “Pode beijar a noiva”. Os lábios dele nos meus. Eu a sentir-me corar, as pernas trémulas, o corpo a escaldar. Enfim marido e mulher. Enfim eu dona de um destino meu. Dali saímos sem grandes celebrações. Pouco havia a celebrar. Dois seres unidos perante Deus, oferecidos um ao outro perante esse Deus, Pai, garante da fidelidade e das boas práticas. Beijámos compadres e comadres, crianças e velhos. A todos agradecemos a presença na igreja, os votos de felicidades. O meu Zé ajudou-me a subir para a carroça. Rodas grandes e pesadas de ferro, caixa de madeira, dois bancos corridos, puxada por uma égua castanha e luzidia, Seara de seu nome. No balanço cadenciado atravessámos a direito a rua da nossa aldeia de casas caiadas. Sempre debaixo da chuva miudinha. Os cabelos já desfeitos pela humidade, os corpos transidos pelo frio. Encostados um ao outro, adivinhando a intimidade que iríamos partilhar. Na nossa casa caiada. Porta de madeira escura com uma pequena fresta à altura dos olhos. Foi nessa casa que entrámos. Ele primeiro, eu depois. As roupas molhadas. Os cabelos encharcados. Os corpos a arder. Uma divisão de entrada que era também a cozinha, separada do quarto de cama por um cortinado de chita florida. Uma cama de ferro. Um colchão de palha. Uma colcha de chita. Florida. A minha roupa de noiva libertou-se de mim. O fato domingueiro e os sapatos de verniz apertados soltaram-se do meu homem. Aos pés da cama uma arca. Azul petróleo. Uma fechadura ladeada por dois corações. De dentro dela saiu uma camisa de dormir, de linho grosso, fiado à mão, o cheiro dos sacos de alfazema. Na cama de ferro conhecemo-nos, amámo-nos, morremos. Dois corações, dois corpos, um olhar azul petróleo.

2 comentários:

Diário de Lisboa disse...

Tão mas tão bonito...
beijinhos.

vera disse...

Uma colcha de chita !
escreves bem, cativas

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