Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

domingo, 11 de abril de 2010

João Tordo

"[...]me deparei com a seguinte frase num livro de Javier Cercas (talvez o nome mais importante da literatura espanhola actual, talvez): só se pode escrever quando se escreve como se estivéssemos mortos e a escrita fosse a única forma de evocar a vida, o único cordão que ainda nos liga a ela. Soube então que a minha suspeita – embora desejasse que assim não o fosse – se confirmara afinal verdadeira: que um escritor não é um escritor porque o quer ser (e quantas vezes, na adolescência, coloquei a mesa de trabalho no centro do quarto tentando aldrabar as minhas probabilidades), ou porque se julga talentoso, ou porque lhe disseram que é capaz; um escritor é um escritor porque, noutras encarnações, já foi um marinheiro de água doce e, mais tarde, um capitão solitário num navio a caminho de parte nenhuma e, finalmente, um pirata zarolho e coxo, afogado em rum, que consumira tanto mundo que, a certa altura, acabara consumido por ele e nada mais lhe resta que ir saqueando os navios de passagem, colhendo tesouros obsoletos e cobertos de pó e deixando marca das suas ossadas, demasiado vivo para morrer e demasiado morto para viver.
Infelizmente, os tempos são outros: são tempos de gente demasiado educada, que julga que a vida é o sistema de suporte da arte; que a arte, ou esta coisa da escrita – se é que lhe podemos chamar assim, se é que vale esse epíteto -, esta coisa de escrever e tentar dotar o mundo de sentido através da beleza, é obra de gente educada, respeitável, correcta e incorrigivelmente sóbria. 
Assim, tenho saudades dos bêbedos. Tenho saudades dos mal-educados, dos inconvenientes, dos que tratam da saúde como quem trata um fósforo que o vento apagou, dos que passam mais tempo a viver do que a escrever porque a escrita não é o casco do navio mas a sua vela ou nem sequer isso, pequena flâmula que brilha lá em cima para que ao longe se saiba que rasga, trôpega, o mar bravio, uma embarcação de piratas. Os escritores eram sobretudo isso: eram piratas; pelo menos nos tempos em que havia escritores coxos, de palas no olho, de hálito embargado pelo álcool, de olhos revirados do avesso da loucura, de braços pendurados aos ombros dos outros piratas porque mal se conseguiam ter de pé – porque, como é sabido, os piratas andavam sempre em grupo, só se separavam quando a morte chegava e os varria com violência da superfície deste lugar onde nos afundamos em terra firme mas, por paradoxal que nos pareça, nos aguentamos à tona no mar bravo.

Porque a escrita não é a vida mas, por vezes, pode ser uma forma de regressar a ela."

João Tordo, in Portal da Literatura

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