Paula Rego,
A Mulher cansou-se.
Não abriu a boca, não disse a ninguém. Desarrumou tudo. Atirou coisas pela janela fora. Fechou portas e abriu janelas. Pôs música a tocar bem alto e fez-se esquecida dos vizinhos.
Vestiu-se com o primor de uma verdadeira rainha, ou princesa.
Foi para o quarto e pôs-se em frente do espelho. Analisou cada centímetro do seu corpo, encontrando centímetros a mais aqui e ali. Analisou as feições que o espelho lhe reflectiam e franziu a testa. Analisou o cabelo despenteado. Tirou a escova da carteira e escovou o cabelo. Com a cabeça virada para baixo, primeiro. Com a cabeça virada para cima, depois. Voltou a analisar o cabelo. Parecia-lhe melhor, volumoso mas melhor. Atou-o num rabo de cavalo preso com uma fita vermelha. lembrou-se de fitas vermelhas em cabelos louros de infância.
Procurou uns sapatos com salto alto. Só encontrou sandálias. Calçou-as. Sentiu-se elegante.
Abandonou o espelho e o quarto.
Mudou-se para a sala. Aumentou ainda mais o volume da estereofonia e escancarou ainda mais as janelas.
Saíu para a varanda e rodopiou. Olhou a rua lá em baixo. Movimentada. Pessoas apressadas, carros conduzidos por condutores enervados e mal dispostos, eléctricos não tão velozes quanto os outros veículos. Uma massa que se movimenta. Cada parte da massa ignorando a outra. Nenhuma parte da massa olhou para cima, procurando a origem da música, clássica, cada vez mais ensurdecedora. Era o que ela desconfiava. Ninguém tem tempo para mais nada para além da sua própria pressa.
No chão da sala espalhou livros. Espalhou caixas de filmes. Espalhou caixas de CD's. Acendeu um cigarro e fumou. Sacudiu a cinza para o chão. Espalhou-a com a ponta da sandália. Dançou mais.
Conseguiu aperceber-se do toque irritante do telemóvel. Procurou-o na balbúrdia da sala. Encontrou-o e desligou-o. Estava decidida que o Mundo iria terminar. No próprio dia em que dançava.
Escreveu um bilhete. Leu-o. Amarrotou-o. Não diria nada, não daria satisfações.
Mergulhou na macieza do sofá. Pele ruçada de tanto uso. Pedaços de forro já à mostra. Pedaços de forro já à mostra. O que queria mesmo era adormecer. Fechou os olhos. A mão direita tocou o pescoço, acariciou-o. Liso, sem adornos. Quis sentir algo mais do que o peso que lhe ia fechando os olhos e abrandando o cérebro, mas dentro de si já diminuía a intensidade da vida, já se silenciava o som do pensamento.
O som da música silenciava-se também.
A Mulher estava, por fim, em Paz.
A seu lado, aberto, o livro infantil. Branca de Neve e os Sete Anões.
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