Vivo. Algures longe daqui. Num rectângulo de chão, numa praça da cidade que dizem ter a mais bela luz, perto do rio. Acumulo, no meu rectângulo de cartões prensados, pedaços da vida de outros. Pedaços deixados ao acaso nos passeios da cidade, ensacados em bermas de estradas. Há desespero neste meu coleccionismo anárquico. Há obsessão na vontade de acumular os pedaços que outros dispensam. Esgravato. Tal como os animais em busca de comida. Esgravato o que outros desprezam, na ânsia constante de encontrar um fio que me faça retomar a meada da vida que desfiei e à qual não consigo voltar a dar o formato de um novelo. Idêntico aos que a minha Avó transportava consigo e que transformava em camisolas, cachecóis, casaquinhos e botinhas para netos e bisnetos. Onde estás Avó? Perdida algures na minha memória perdida de dias perdidos. Onde estás tens a minha Mãe por perto? Estranha memória a minha que me esvazia de tantas imagens mas nunca me retira a da minha Mãe. Sinto-lhe a falta, pressinto-lhe o cheiro e a doçura das palavras se me pudesse ver agora. Destruído, por dentro e por fora. Arruinado por uma vida incerta, por hábitos que em ruínas me transformaram. Não passo de um monte de tijolos que ainda se mantêm presos uns aos outros por uma força ténue, cada vez mais ténue. O que inicialmente me dava força e personalidade arrasta-me agora a uma velocidade bruta para o estado de decrepitude total. Os pedaços dos outros estão à minha volta. Por todos os lados. Esgravato-os, mas também me escondo neles. Dissipo a minha ruína por entre pedaços que outros não quiseram manter. O meu rectângulo de cartões prensados é fixo. Durante o dia deambulo pelas ruas. A troco de moedas visto a pele de ajudante de condutores menos treinados na tarefa de estacionar carros. Por vezes já nem moeda recebo. Muitas vezes recebo um olhar ameaçador. Afasto-me. Acho que nesses momentos quase consigo recuperar a memória de dias em que não havia nevoeiro a guiar os meus passos. Não sei como conseguem as minhas pernas aguentar tantos passos que dou, tantas calçadas que piso, tantas escadas que escalo. Hoje dei por mim frente a esta casa. também ela uma sombra do que foi. Aparentemente sólida, não passa de uma ruína. Paredes partidas e grafitadas. O cheiro nauseabundo dos locais que abrigam os que não têm para onde regressar ao final do dia quando o sol se esconde e o frio escuro da noite se abate sobre a terra que dorme. Toco nas paredes destruídas. Acaricio-as como de um corpo de mulher se tratasse. O olhar fixo em cada deformação, em cada traço de tinta, vou tentando reconstruir a dignidade do espaço. Na minha cabeça tudo surge diferente. Sou capaz de imaginar a luminosidade, a frescura e a sobriedade das cores claras reflectindo a luz do sol filtrada pelo azul do mar.Interrogo-me sobre as razões que levam à morte dos edifícios. Será que não basta a morte dos homens no mundo? Será que o desencanto dos homens se transfere para paredes e as faz ruir em sinal público de desespero e protesto? Não entendo, não sei explicar. Miro-me num caco de espelho abandonado no chão e não me reconheço também. A cara encovada e os olhos vermelhos. O cabelo crespo, enovelado pela sujidade. Corpo magro. Roupas andrajosas. Sim, eu faço parte deste local. Também eu estou em ruínas e não posso esperar que alguém me venha salvar da derrocada final. Estendo-me no chão. Os pés virados para o local onde já terá existido uma janela. Consigo ouvir o ruído dos carros que passam. Consigo sentir o tremor que provocam no alcatrão. Fecho os olhos e às narinas chega-me o aroma da brisa marítima. Maré vaza e o sol a abandonar o horizonte. Aqui, neste quadrado de chão que é hoje, neste momento, o meu lar, fecho os olhos e espero. Pela derrocada final.
1 comentário:
Se a fotografia me agrada....o texto agrada-me muito mais...
Com LUZ...
G;-)~
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