Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Coração [de Papel]


Desenha-o primeiro. Lápis de cera, preto, apertado entre dedos pequeninos da mão esquerda. Ninguém lhe ensinou especificamente que era aquela a forma, que era aquele o símbolo para demonstrar um sentimento de afecto por alguém. Desenha-o com a precisão que a sua tenra idade lhe permite, com a convicção de que o há-de oferecer à menina sentada a seu lado, com quem divide lanches e segredos, risadas e brincadeiras. Ela não espreita o trabalho dele. Cabelo preto atado num rabo de cavalo, pestanas compridas, baixas, como os seus olhos, absorta no seu desenho, num mundo de faz de conta que só existe na sua cabeça e que transpõe para o papel. Almaço. Grosso. Tudo menos branco. Da cor que deviam ter os pensamentos se fossem transparentes, mas eles ainda não sabem dessas características dos pensamentos que correm nas suas cabeças de meninos . Ele espia-a furtivamente pelo canto do olho. Esquerdo. Vai terminar de desenhar aquela forma arredondada, com um vinco a meio, com um bico em baixo e vai recortá-la, enfiá-la num fio, provavelmente um qualquer cordel, e vai fazer um colar. Que lhe vai oferecer a ela, que finge não estar ali, sentada ao lado dele, desassossegando-lhe a alma e o coração.
Cresceu. Cresceram-lhe as mãos e o corpo. Já não usa lápis de cera e na mão esquerda segura agora uma esferográfica azul. Vai seguindo as explicações da professora e tomando notas no caderno pautado onde, com mão firme, desenhou já um coração. Não um coração redondinho, com um bico em baixo, mas um coração onde se percebem aurículas e ventrículos, aorta e pulmonar, trajectos de sangue arterial e de sangue venoso. Tenta não perder nenhum pormenor da explicação enquanto mentalmente se questiona sobre a explicação para a ligação deste órgão humano à capacidade, virtude de amar, de gostar de alguém e graficamente o demonstrar. E nos dias que se seguem devora livros. Busca uma explicação para o sentimento ter sede no mesmo órgão que a vida. Não encontra razões, mas sente uma dor que o aperta. Que lhe faz perder o ar quando no meio do estudo lhe surge a imagem de uns certos cabelos pretos acompanhados de pestanas longas. O coração bate mais rápido quando dela se lembra, bate vagarosamente quando sabe que ela está longe.
A idade adulta surpreendeu-o solto na vida em busca de explicações. Após ter entendido que só a cabeça comanda as acções humanas. Pendurado, dentro de uma das estantes de livros, tem o coração de cartolina vermelha. Os cabelos pretos nunca nele ficaram presos. Ele nunca teve a coragem necessária para lho oferecer, para lhe dizer que o músculo que é o seu coração feito de dois tipos de sangue batia por ela, minuto a minuto. Repreende-se. Questiona-se como teria sido se tivesse sido capaz. Sofre. Por amor. Tem a certeza de que é no coração que está tudo o que se sente e que o lado esquerdo, o que usa para escrever, cortar, comer, é o lado certo da vida. É para o lado esquerdo que aponta o bico no fundo da forma arredondada que é o coração.

5 comentários:

Rosa dos Ventos disse...

Que ternura de crónica!
Talvez haja muitos corações por aí a dormir dentro de livros...

Abraço

Anónimo disse...

Lindo(muito)apenas!
Que ternura.

Gi disse...

Gostei. Do fundo do meu coração.

Filoxera disse...

Muito bonito, este teu texto.
Beijos.

Diário de Lisboa disse...

Só o li agora, o tempo passa. Tão bonito. Muito mesmo.
Ternura em estado puro.
Bjs

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