Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Do Escritor Perdido


quando me sento diante do papel em branco, assusta-me sempre a possibilidade de alguma vez não ser capaz de transformar em legível uma folha alva, produto da morte de uma qualquer árvore. tremem-me as mãos, mordo as pontas dos dedos para não roer as unhas. acidentalmente rabisco uns bonecos mal feitos, sem pés nem cabeça, muitas vezes flores, o desenho básico da infância em que qualquer ponto pode ser o pólen e meia dúzia de formas ovais ou redondas podem ser folhas de uma flor inexistente na classificação das plantas. nem sempre as ideias me parecem dizíveis ou, pelo menos, minimamente interessantes para quem as possa vir a ler. questiono as minhas memórias sobre o pouco material que me oferecem nas tardes quentes em que escrever é uma fuga, um retiro. não me dizem muito estas meninas. diluídas na massa cinzenta do meu cérebro. levanto-me. em dois ou três passos, se forem dos mais apertados, alcanço o fundo do quarto onde me retiro para escrever, ler e pensar. deito a mão ao botão da ventoinha circular. as pás iniciam o seu rodar. deleito-me com o primeiro vento que delas sai e, numa atitude meio suicida, meio infantil, tento-me a meter os dedos por entre a armação de ferro, fascinado pelas formas que as pás formam ao girar. mais três passos apertados levam-me de volta à secretária. tosco tampo e madeira fixado à parede por armações metálicas originalmente usadas nas estantes handy. analiso-me pelo estado desta secretária improvisada. sou um amador das letras, com certeza. está tudo impecavelmente arrumado. lápis afiados e esferográficas prontas a usar alinham-se num tabuleiro que há já uns tempos foi cama de talheres, dentro de uma gaveta pesada, de mogno, do móvel da sala. livros de consulta frequente, de cujas páginas saem tirinhas de papéis coloridos e meio autocolantes, marcadores de frases, ideias, palavras a fixar e a citar. papel branco, em resma, do lado esquerdo. cadernos. vários. tiques de escrevedor que não resiste à compra de mais umas páginas em branco, de mais uma capa, diferente, conquistadora de atenção por este ou aquele motivo. em todos os filmes que vejo sobre escritores, há desarrumação. lembro-me de um que vi sobre Virginia Wolf que mostrava um quarto repleto de folhas de papel. por todos os lados. chão incluído. a escrita, expoente máximo da criação, estava ali retratada como uma urgência de expôr ideias, de cobrir o branco com o escuro do manuscrito, ou da máquina de escrever. ainda não atingi este ponto de criação. é a custo que as palavras me saem e quando finalmente as desembaraço de mim, tenho de as seguir de perto para que não se percam no que dizem, no que querem significar. mas como posso eu ter a veleidade de me comparar a uma Wolf? à partida estou em desvantagem. sou homem e os homens, é do senso comum, só conseguem fazer uma coisa de cada vez, só conseguem focar a sua atenção num pensamento de cada vez, nunca mais, correndo o risco de perderem a atenção, de deitarem por terra a execução do que pensam ou fazem. claro que me ultrapassa a explicação científica desta constatação, se é que ela existe, mas aqui fechado no meu pequenino quarto, sabendo que ninguém me ouve se as palavras me saltarem da boca enquanto penso, porque não domino a coordenação de pensar e não repetir com a minha voz as palavras que penso, reconheço que me é custoso fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo. as mulheres? são um polvo. não perdem o norte e conseguem dar atenção e coordenar múltiplas tarefas em simultâneo. deve ser por isso que wolf era um génio da escrita. mas também deve ser por essa capacidade sobrehumana que têm que algumas mulheres se sentem a passar para o lado negro da loucura. estão a ver a minha dificuldade? de que falo eu? que considerações são estas que partem de mim e aterram nas mulheres e na sua escrita. sim, tenho a porta fechada. tenho a certeza. esta porta castanha e antiga, decorada com um mero puxador branco de esmalte cuja tinta já esfolou. é esta porta que me separa do mundo. foi esta porta que me encerrou de medos e de inseguranças. o pequeno quarto onde escrevo é o mesmo que me viu crescer. que me viu passar dos carrinhos de lata aos aviões de papel com mensagens de amor, que atirava pela janela na esperança que aterrassem na porta da mercearia em frente, onde estava sempre a Joaninha, filha do dono da loja. nunca consegui ter arte suficiente para a pôr a olhar para aqui. para a pôr a olhar para mim. para a pôr a ler as minhas palavras. é aqui que me encerro. por trás da porta castanha. páro agora. oiço barulho lá fora e tenho que espiar pela janela. pode ser a Joaninha. pode ter encontrado o avião de papel que acabei de fazer voar pela janela. só lá estava escrito que estou perdido. no meu quarto pequenino de porta castanha.

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