Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Ao Som do Rio que Corre para o Mar


Daqui
Deixa-me ouvir o rio correr lá ao fundo, lá fora.
O movimento das águas lembra-me a vida e a minha está parada.
Abre as janelas e as portadas. Tudo aberto para trás. Ai, cala-te com essa conversa do frio e das pneumonias. Que me importa a mim que entre o frio que vem da rua, da água, da montanha que começa a gelar com as geadas matinais? Esqueces-te que frio é o que vive dentro de mim? Todo o que puder chegar da rua não me arrefecerá mais. É impossível. Pronto. Assim está bem. Consigo ver os ramos despidos do castanheiro onde existia o baloiço onde gostavas de te abanar enquanto lias as lições de piano. Marcavas os ritmos do estudo com o balançar do teu corpo. Eras engraçado quando eras rapazinho. Sempre desalinhado e afogueado, atento e concentrado quando do piano se tratava. Eu sorria interiormente. Gostava de acreditar que te tinha transmitido, pelo sangue do cordão umbilical, o meu fascínio pela música e tu não me deixavas ficar mal nesta minha crença. Trocavas qualquer plano pelo piano e eu, da cozinha, escutava os teus treinos. O solfejo que nunca te assustou, os exercícios de aquecimento das mãos, as horas de prática.
Não te importas? Vai ali ligar o rádio, mas não o ponhas naquele posto barulhento que os teus Filhos adoram. A minha cabeça já não aguenta. põe naquele outro que ouvíamos quando te ia buscar à Escola. Sei que ainda existe. Oh...não faças essa cara. Está tudo bem comigo. Tenho frio mas quero manter as janelas abertas. O castanheiro já não suporta nenhum baloiço mas continua a ser a árvore mais bonita do nosso jardim. Quando vier a Primavera levas-me para baixo e lês-me Os Desastres de Sofia à sombra do castanheiro, está bem? Tu adoravas quando nos sentávamos os dois em cima da manta de quadrados vermelhos e brancos e líamos a história a meias. Eu adorava ouvir-te ler, atrapalhado com a grafia antiga da minha versão do livro que já tinha pertencido à tua Avó. É verdade, foi boa a tua Infância. Eu sempre por perto sem te abafar de mimos e cuidados, tu sempre por perto com as tuas perguntas insistentes. Cresceste mas mantiveste-te fiel ao piano e à nossa cumplicidade. Por isso estás aqui. Hoje e agora. Quando as forças me abandonam e me impedem de sózinha ir ver o rio a correr, com pressa de chegar ao mar, de me sentar na sombra do castanheiro a ler.
Fecha as janelas. E as portadas. Não, não tenho frio, não sejas teimoso. Apenas preciso de descansar. Continuas o mesmo menino das perguntas intermináveis, do génio enérgico, cansas-me. Anda, vai para baixo. Senta-te na banqueta e faz uns exercícios de solfejo. Quem sabe, se eu acordar deste sono que me começa a fechar os olhos, vou ter contigo e te corrijo a posição das mãos no piano...

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