Grafia

A Autora deste Blogue optou por manter na sua escrita a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Jerónimo Só

Daqui
Era assim que estava. sentado num canto escuro. sozinho. enrolando com as mãos pequeninas, de palmas muito brancas e unhas muito rosadas, o cabelo já de si encarapinhado. o olhar escurecido. pela falta da luz. pela falta de alguém. tentei controlar os meus sentimentos. ia avisada para o que ali ia encontrar, mas a realidade é sempre mais chocante que as palavras que nos são ditas. a característica europeia da vida afasta-se anos luz da característica africana da vida. sabia que ia estar cara a cara com crianças que há muito vivem sós, reféns da herança que o vírus HIV lhes deixou nas Famílias que foram desaparecendo. sabia que ia encontrar meninos, que na Europa seriam empurrados em carrinhos de bébé, a viver sozinhos. a sobreviver. sabia tudo isto, mas não sabia o sabor do nó que se formaria na minha garganta e que teria de fazer desaparecer. a minha ida aquele local, aquela pequena aldeia, aquelas habitações tinha o propósito de criar empatias e não compaixões primárias. eu estava ali para que o escuro das casas feitas de terra misturada com água se esbatesse um pouco. estava ali para aprender como viver numa civilização diferente da minha. mas não estava preparada. sentia-o agora. era como se tivesse acordado dum sonho onde todas as crianças eram felizes. de repente acordava e descobria que existem crianças com olhos muito tristes, mais tristes do que deveria ser permitido uma criança ter. baixei-me para entrar na habitação escura. vinda do sol luminoso do hemisfério sul, a escuridão adensava-se. só via, no canto oposto, uns olhos enormes que me fitavam. à minha brancura. às minhas roupas. senti-me desadequada. senti-me excessiva. senti-me uma ofensa. olá Jerónimo. ele não fala português, dizem-me. vou-me aproximando. os olhos sempre fitos em mim, nos meus movimentos, principalmente na mão direita, no pulso carregado de guizos brilhantes, coloridos e sonoros. sento-me à sua frente. percebo a preocupação misturada com a tristeza do olhar. opto por me acocorar, fico numa posição idêntica à dele, frente a frente, como se fossemos o positivo e o negativo de uma foto, a versão a preto e branco, a versão a cores. estendo o braço direito, o que lhe prende a atenção e o olhar. olha-me. desconfiado. quase amedrontado pela proximidade. denotando os efeitos de uma vida curta sem o toque de outrém. não falo. não me mexo. as pernas avisam-me que esta não é uma posição a manter durante muito mais tempo. subrepticiamente balanço o peso do corpo para me manter acocorada. o braço direito estendido na direcção dele, para que se sinta tentado a tocar-me. o braço direito baixa-se. a mão larga o bocado de cabelo que enrolava entre os dedos e avança na direcção dos meus guizos. toca-lhes. fita-me, interrogando com o olhar. mexo ligeiramente o pulso para que os guizos se façam ouvir. quase sorri. repito o movimento do pulso. os olhos soltam-se um pouco mais. permitem-se relaxar um pouco, permitem-se esquecer. a solidão. a tristeza. a doença. a morte. Qu’ manêra qu’ ê bô nôm’?, pergunto-lhe, usando a memória para me recordar de como deveria encetar uma relação de proximidade com aquele menino só. como é o teu nome? sorriu. uns dentes brancos, mais do que brancos, quase fluorescentes na escuridão da cabana. Jerónimo. responde. sorrio. respiro fundo. o gelo está quebrado. afasto lentamente a minha mão direita. enfio-a dentro do saco que tenho pendurado no ombro. tiro um outro pequenino saco. puxo as fitas que o apertam e abro-o. uma pulseira de guizos. um espelho de carteira. uma esferográfica. um papel. disponho-os no chão entre nós. alinhados. Jerónimo estende imediatamente a sua mão esquerda para os guizos. fá-los tilintar. mais e mais. sorri. olha-me e sorri. atrevo-me e mostro-lhe o espelho. viro-o para que veja o seu rosto reflectido. fecha o sorriso. semicerra os olhos. percebo que nunca vira a sua cara antes. decido continuar a espantá-lo. pego na esferográfica e desenho uma casa no papel amarelado. percebe. é a representação do local onde vive. sem deixar de abanar a pulseira de guizos, volta a sorrir. a olhar-se ao espelho. estende-me a mão. sempre a esquerda. dou-lhe a caneta. faz riscos nos papel. um. e outro. e mais outro. de repente, muitos. sai da posição em que estava e avança para mim. tento aguentar a pressão das pernas e não me deixar ir abaixo. percebo que se vai aproximar mesmo muito de mim. não quero desequilibrar-me e assustá-lo. consigo. quando o tenho bem perto, toco-lhe na cara. faço-lhe uma festa. beijo-o na testa. sinto que está criado o laço de que preciso para retirar aquele menino do escuro. da solidão. da morte. durante os próximos meses estarei por aqui, a tentar diminuir infimamente a dor que há muito se lhe instalou no coração. na vida. difícil.

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