Esta veio daqui
Subo-a. Sigo o trilho que outros antes de mim foram abrindo nesta terra. Vegetação espessa e cerrada. Terra escura e dura, pejada de calhaus, ramos e raízes que vêm à superfície como se a profundeza do solo não lhes fosse suficiente à vida. No ar a humidade própria do espaço onde milhões de árvores, fetos e outra vegetação respiram. O cheiro que só o verde transpira. Um cheiro fresco capaz de encher os pulmões de oxigénio em estado puro até à intoxicação e ao desmaio.
Já nem sei o que me invadiu quando decidi que seria capaz. Sozinho, estrada fora. Desafiei-me a mim próprio e aos limites do meu ser. Até quando resistiria sem falar com ninguém? Sem ver pessoas? Seria eu capaz de levar esta aventura até ao fim? E onde seria o fim se não tenho carta nem bússola que me guie? Leva-me o céu, o sol e as estrelas. Leva-me o trilho marcado no chão. E continuo a subir. Sei que já subi muito. Canso-me mais, a respiração está ofegante e obrigo-me a parar. Conto pulsações, faço exercícios respiratórios e avanço.
A minha memória toma conta de mim. O ar rarefeito está a roubar-me a consciência e a devolver-me memórias que julgava perdidas. De repente surgem à minha frente as bicicletas. Somos cinco. Amigos e companheiros de trilhos perdidos. Pedalamos dia após dia até que o mapa nos diga que estamos a chegar. Quanto tempo tem esta memória? Porque voltou agora? Nunca pisámos este trilho. Tenho a certeza que é novo, que o escolhi só para mim. Para o conhecer. Talvez vos traga até ele um dia, mas porque é que se estão a intrometer agora?
Uma casa. Pedra. Pedra sobre pedra. Rectangulares e até mesmo sem forma definida. No meio do verde o cinzento. Na porta, pesada, de madeira, uma aldraba. Enfio a mão e giro-a. Está aberta, destrancada, convida-me a entrar. Não me faço rogado. Os olhos cerram-se na tentativa de deslindar o que o escuro tem resguardado. Na parede de fundo uma enorme lareira. Ligo a lanterna. Percorro a casa. Quartos alinhados ao longo de um corredor comprido. Ao fundo um pequeno hall onde dormem um louceiro e um despenseiro. Porta de acesso a uma cozinha. Chaminé baixa abrigando um enorme fogão de lenha. Ferro preto. Ferragens de latão amarelo. O cheiro inconfundível da cinza há muito armazenada nos poros das tábuas do soalho.
Regresso à sala. Desenrolo o saco cama e deito-me dentro da lareira. Como se me aninhasse no berço onde há muito fui embalado. Como se a minha vida, no escalar da montanha, tivesse andado para trás.
Não sou o homem que se reflecte no espelhado dos óculos escuros. Sou a criança que já fui. A voltar à origem. À terra...
6 comentários:
Fiquei perdida de amores pelo teu texto... de repente vi-me na casinha dos 7 anões, como se fosse a Branca de Neve.
Um regresso às origens, com um percurso fascinante!
Surpreende-me sempre esta alternância que fazes entre posts do dia-a-dia, divertidos e reais e os instrospectivos, sonhadores com a sensibilidade à flor da pele.
Este é um desses.
A imagem do anichar na lareira é deliciosa.
dorei.
Beijinhos, linda
ohhh tao giro :D tenho muito orgulho em ser sua sobrinha do coração!! gosto TAANTO de si :)
beijinhos grandes M.B.
Por instantes me vi na terra que me dizia olá, que me via mais crescido cada vez que me dizia adeus, que me guardava um mundo sonhos e aventuras de criança. A terra que já não é a mesma.
Gostei bastante de ler.
beijo
Outro texto lindo.
Só espero que a lareira eteja bem limpa :-)
Beijos.
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